quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O CONSUMO É UM VILÃO?

Na tese sobre o Socialismo, ponto 59, são citados, como “problemas e limitações do sistema” “... a pouca variedade, baixas disponibilidade e qualidade dos bens de consumo duráveis e mesmo dos não duráveis à venda, da baixa qualidade de diversos setores de serviços, como restaurantes, lojas de varejo, serviços e outros. Também são reconhecidos os problemas advindos da estrutura de planejamento centralizado, em geral, como a tendência ao desperdício por parte das empresas, dos desequilíbrios entre a oferta e a demanda, à morosidade na introdução de novos produtos e processos na produção ...”.
No ponto 83 está dito que “... a busca do atendimento a necessidades de consumo à moda “ocidental” pode ser citada como uma causa importante da derrota política sofrida.” Em 86 é dito que “... a disputa pela hegemonia política e ideológica perderia terreno para a pressão pelo consumo, para a alienação.”
Enfim, o “consumo” é ora visto como vilão, ora “as baixas disponibilidade e qualidade dos bens de consumo” é que é o vilão. Então temos que procurar entender de que consumo se trata.
Não há dúvida de que temos que combater o “consumo à moda “”ocidental””, que deve estar identificado com o consumo de bens supérfluos, que não podem ser estendidos a toda a população, geralmente ligado a grandes desperdícios.
Algum reacionário “americano” disse que “para acabar com o comunismo, bastaria distribuir o catálogo da Sears em Moscou”. De fato, a propaganda do modo de vida consumista podia impressionar soviéticos com baixo nível de formação política. E não só soviéticos: um noticiário mostrava um alemão oriental feliz com a queda do muro, pois agora ele poderia ter uma lata de “sopa campbell”.
É verdade que muitos produtos soviéticos tinham baixa qualidade. Tive uma câmara fotográfica Zenit, com excelente óptica mas que não suportou o clima tropical, sofrendo rápida corrosão de algumas peças e apodrecimento de uma cortina de tecido. Um amigo, Celso Araújo, recebeu de um camarada de Moscou uma amostra de canetas e lapiseiras russas para ver se era possível estabelecer uma representação comercial no Brasil: a qualidade era tão baixa que não era possível.
Por outro lado, um excelente produto soviético foi bastante distribuído no Brasil: livros. Minha formação na Politécnica foi muito ajudada por ótimos livros técnicos que eu comprava na Livraria Tecnocientífica. E também livros mais diretamente políticos que contribuíram para minha formação mais geral.
Então há produtos em que os soviéticos eram muito bons. Foram pioneiros na televisão a cores, mas não tiveram capacidade de conquistar um mercado, concorrendo com os japoneses. Produziram o Niva, um bom carro com tração nas quatro rodas, mas pouco exportaram pois não tinham estrutura de assistência técnica. Produziam caminhões que venciam o Raly Paris – Dacar.
Uma amiga esteve em Moscou e procurou uma panela para cozinhar em seu apartamento, onde estava sozinha. Só encontrava, no mercado, panelas enormes, provavelmente dimensionadas por algum burocrata da indústria do alumínio que tinha que “mostrar serviço” em toneladas, ou algum "planejador" que considerou o tamanho médio das famílias, dando razão ao idiota que associa "planejamento centralizado" à "tendência ao desperdício". Ela, como física, calculou o desperdício de energia causado pelo aquecimento de tanto metal desnecessário, na produção da panela e na produção da refeição. De fato, ali havia problemas, mas não "advindos da estrutura de planejamento centralizado" e sim de um mau planejamento.
Ficou famosa a discussão entre Nixon e Khruchev sobre a validade de um espremedor de laranjas, pois Khrushev achava que bastava uma faca. Claro que ele tinha razão em se tratando de uma laranja, mas sendo uma dúzia, Nixon começava a ter vantagem.
Precisamos entender que um certo nível, quantitativo e qualitativo, de consumo é parte da qualidade de vida da humanidade, objetivo fundamental de qualquer comunista. E os soviéticos falharam nesse desenvolvimento, talvez por associarem a “pressão pelo consumo” com a “alienação”.
Os soviéticos falharam, de forma geral, na educação do povo, isto é, na educação política. A educação política deveria desenvolver um espírito crítico, inclusive para o consumo. O cidadão soviético comum tinha que ter, despertada em si, a consciência de que o consumismo irrefreado, provavelmente representado pelo catálogo da Sears, era estúpido, não só dos pontos de vista econômico e ecológico mas do ponto de vista humano. Por outro lado, o dirigente soviético comum tinha que ter, despertada em si, a consciência da necessidade de uma grande indústria de televisores ou geladeiras de boa qualidade e baixo custo. Tiveram a atitude correta de desenvolver um excelente sistema de transportes públicos, do metrô de Moscou à Aeroflot, desprezando a idéia muito “americana” e estúpida de um carro para cada família. Mas o cidadão comum continuou querendo o carro, pois não tinha a educação política, crítica, para o consumo. (Talvez a solução intermediária tivesse sido o maior desenvolvimento das belas motos Ural, com side-car, as únicas motos com tração nas duas rodas).
Não há dúvida de que a qualidade de vida está associada à qualidade do consumo. E a qualidade do consumo tem que ser definida socialmente. Em primeiro lugar, a qualidade não implica quantidade. É necessário que haja uma boa distribuição da capacidade de consumo, evitando-se o que é comum no “ocidente”, de poucos consumirem demais. A qualidade dos produtos consumidos (incluindo serviços) deve ser controlada socialmente, dos produtos alimentícios aos eletrônicos. As agências de controle devem ser poderosas, controlando as empresas (e não o contrário, como é comum no “ocidente”). Normas técnicas são importantes para o controle social da qualidade, e as normas soviéticas GOST (pelo menos algumas com que estive trabalhando) são excelentes.
É claro que a educação política não deve despertar apenas o espírito crítico, pois apenas criticar é muito fácil e não leva a nada. Deve ser buscado o espírito de cooperação e de investigação, de forma que a crítica a determinados consumos seja abalizada, seja combinada com posturas ecológicas e econômicas.
O papel do mercado é um ponto crítico. No socialismo tem que continuar a haver o mercado. Não no sentido "ocidental" a que estamos acostumados, em que o "mercado" (leia-se "o capitalista") controla o consumidor através da propaganda enganosa e da educação alienante. "Na guerra e na publicidade, a primeira vítima é a verdade", essa é a regra no "ocidente". O mercado, no socialismo, deve ser um mecanismo de planejamento e distribuição dos produtos do trabalho. O planejamento centralizado e democrático, no sentido leninista, deve envolver o mercado. Deve basear-se em informação objetiva sobre as necessidades reais dos consumidores, ligadas ao desenvolvimento de sua qualidade de vida, e por outro lado, em informação ao consumidor sobre os produtos, sem propaganda, crítica, permitindo uma participação dos consumidores no planejamento, na análise de custos econômicos, sociais e ecológicos. O problema é que a democracia foi substituída pela burocracia.
Ernesto
setembro 2009

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