sábado, 31 de outubro de 2009

Fiscalização flagra escravos em escavações para rede da Claro.

Grupo foi aliciado no Rio de Janeiro, não recebia salários, estava alojado em galpão e pagava pela comida. Subcontratada pela empresa de telefonia celular não fornecia água potável nem equipamentos de proteção individual



Por Bianca Pyl



Após a denúncia de quatro pessoas que não suportaram as condições de trabalho, a Superintendência Regional do Trabalho e Emprego do Espírito Santo (SRTE/ES) libertou 17 vítimas de trabalho análogo à escravidão, em Vitória (ES). Elas escavavam canaletas para acomodar cabos óticos da operadora de telefonia celular Claro. A fiscalização, que foi acompanhada pelo Ministério Público do Trabalho (MPT), se deu em 15 de outubro.

As vítimas foram aliciadas no Norte do Rio de Janeiro no final de setembro, a pedido da subempreiteira Dell Construções, que por sua vez foi contratada pela multinacional Relacom Serviços de Engenharia e Telecomunicação. Essa última prestava serviços à Claro. O "gato" - intermediário na contratação da mão-de-obra - prometeu aos trabalhadores bom salário e ainda disse que havia a possibilidade de posterior contratação pela empresa.

"Por se tratar de uma empresa conhecida, os empregados se iludiram com a chance de serem efetivados", relata Alcimar Candeias, auditor fiscal do trabalho da SRTE/ES que coordenou a ação.

Os trabalhadores entregaram suas Carteiras de Trabalho e Previdência Social (CTPS) ao "gato". Os documentos, porém, ficaram no Rio de Janeiro. A legislação trabalhista determina que o empregador informe ao Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) no município de origem do trabalhador, por meio das Superintendências, Gerências ou Agências, e emita a Certidão Declaratória (antiga Certidão Liberatória) antes da viagem.

A subempreiteira Dell Construções alugou uma espécie de galpão para alojar os empregados, no bairro Cobilândia, em Vila Velha (ES). Eles dormiam em colchonetes no chão. Havia somente um banheiro para todos. Não tinham itens de higiene pessoal e nem podiam comprá-los porque não receberam nenhum pagamento até o dia da fiscalização.

Os trabalhadores improvisaram uma cozinha no local e a esposa do "gato" preparava as refeições, que eram cobradas. O empregador não fornecia água potável, nem equipamentos de proteção individual (EPIs).

Nos primeiros dias de trabalho, as vítimas caminhavam cerca de 3 km para chegar até o local da escavação, na Rodovia Carlos Lindenberg. "Com a reclamação dos trabalhadores por causa do longo trajeto, a empresa alugou uma caçamba. Achando que estavam resolvendo uma situação, na verdade estavam colocando em risco a vida dos empregados", conta Alcimar.

A jornada de trabalho se iniciava às 6h da manhã e se estendia até às 18h, inclusive nos finais de semana. "Normalmente quando o empregado sai de seu município para trabalhar, até por estar longe da família, ele já trabalha muito. Quando ele recebe por produção, trabalha até a exaustão mesmo. Com esses trabalhadores não era diferente", opina o auditor fiscal.

O acordo inicial proposto pela empresa era pagar R$ 7 por metro escavado. Desse valor, R$ 2 ficariam com o "gato". E para piorar, o empregador achou que a produção estava baixa e diminuiu R$ 2 do valor prometido: se recebessem, os empregados ficariam só com R$ 3 por metro escavado.

Após a fiscalização, os trabalhadores libertados foram transferidos para um hotel, onde permaneceram até quarta-feira (21), quando receberam as verbas da rescisão do contrato de trabalho. A subempreiteira Dell Construção, do Rio de Janeiro, arcou com os pagamentos. A Claro é controlada por empresas do mexicano Carlos Slim, dono de uma das maiores fortunas do mundo.

A Relacom informou, por meio da assessoria de imprensa, "que já está em contato direto com o Ministério do Trabalho do Estado do Espírito Santo para prestar os esclarecimentos necessários. As acusações feitas referem-se a uma empresa subcontratada e tomará as medidas que forem necessárias no conclusão do processo". A assessoria de imprensa da Claro informou que a empresa " já tomou providências internas para o referido caso". A Repórter Brasil não conseguiu contato com a Dell Construções.

sábado, 24 de outubro de 2009

No Paraná, audiência pública discute regularização fundiária de área ocupada

Neste sábado (24/10), a partir das 9h, as 30 famílias Sem Terra do acampamento José Lutzenberger realizam audiência pública para discutir a situação fundiária da fazenda São Rafael, em Antonina, litoral do Paraná.

A audiência contará com a presença do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), Instituto Ambiental do Paraná (IAP), Conselheiros da Área de Proteção Ambiental (APA) de Guaraqueçaba, Prefeitura Municipal de Antonina, entidades, religiosos e autoridades.

Os trabalhadores se encontram acampados na área há seis anos. A fazenda está localizada dentro da APA de Guaraqueçaba e conta com vários problemas fundiários, que vêm emperrando o processo de negociação junto
ao Incra, já que a área possui duas titulações de origem duvidosa.

Quando a fazenda foi ocupada, as famílias se depararam com vários crimes ambientais no local, como o desvio de percurso de um rio, criação de búfalo com acesso direto à nascente do rio e da floresta, uso indiscriminado de agrotóxicos e expulsão de comunidades tradicionais - o que é proibido pela legislação ambiental em uma área de APA.

Hoje os Sem Terra acampados no local estão cultivando alimentos dentro de uma proposta de produção agroecológica, com hortas mandalas e agroflorestas, para o auto-consumo e o mercado local.

O MST exige a regularização fundiária da área e agilidade no processo de assentamento, das famílias acampadas no local

domingo, 18 de outubro de 2009

A IMAGEM DA MULHER NA TELEVISÃO: Da novela das Nove ao Big Brother Brasil: uma violência contra a mulher

A televisão, especialmente na dramaturgia, constrói um ideal de mulher, tanto no plano físico quanto em outras dimensões humanas, como a emocional, profissional e social, reproduzindo uma imagem que passa a ser, uma vez padronizada, a real e desejável. Agrega-se ao corpo padronizado um comportamento social com elementos que não retratam a diversidade da mulher brasileira. Na imagem divulgada, a mulher brasileira não se vê retratada porque a imagem não contempla a diversidade.

Está presente na dramaturgia televisiva, nos programas cômicos, na apresentação de telejornais, a naturalização da discriminação contra a mulher, sua reprodução e reforço, sempre predestinando a mulher a papéis sociais seculares como a maternidade, a sexualidade vigiada e reprimida, o compromisso com o casamento a não visibilidade profissional.

Nos mais diversos campos do conhecimento, filosófico, histórico, científico e nas artes aponta-se historicamente para a naturalização desta discriminação e a televisão auxilia no reforço desta discriminação.

As feministas e o Movimento de Mulheres deram visibilidade a essa naturalização da opressão e pré-determinação, nas lutas de rua e, mais recentemente, também no campo teórico, a partir da adoção de uma categoria, a de gênero, abarcando as relações entre homens e mulheres como uma construção histórica e social, não natural, e, portanto, destrutível da mesma forma que foi construída. A categoria desnuda a situação apontando para as relações de poder entre homens e mulheres, relações essas de subordinação e não de igualdade.

0s conceitos e visão sobre a mulher veiculados na mídia e na grade de programação de TV (publicidade, cômicos, jornais, variedades) sugerem comportamentos sociais desejáveis, especialmente na dramaturgia televisiva, na qual se reforça a situação hierárquica entre homens e mulheres, a partir de uma determinada visão de mundo, levando à construção (ou desconstrução) da mulher real. O norte é sempre o consumo e obviamente o lucro. Promove-se a reificação dos corpos construindo estereótipos.No reality show denominado Big Brother Brasil, as pessoas selecionadas para atuar já sabem que terão seus corpos praticamente vendidos para as revistas de nus.

A televisão constrói essa mulher, recortando e retalhando seu corpo. À exemplo da ciência médica que em sua história pôde construir e implantar membros do corpo humano, no campo estético corporal ocorreu o mesmo: recorta-se o corpo feminino, em partes, implementa-se modelos nestes recortes até se chegar à figuras padronizadas, e, claro, como sói e acontece no capitalismo, em seguida essa imagem ideal é vendida junto com um produto comercial ou como o próprio produto.

A maternidade na teledramaturgia ainda é colocada como uma imposição, como um valor máximo para a mulher e surge ligada à sexualidade. Se infiel - heroína ou vilã- logo são encontradas formas de puni-las. Na novela "Senhora do Destino" para uma das noras da heroína Maria do Carmo é aplicado o método de valoração social a partir da capacidade reprodutiva da personagem: o fato de não poder ser mãe ( e também por ser a segunda esposa) influirá negativamente em sua vida.Sua sexualidade é absolutamente ignorada. Vende-se a idéia da maternidade obrigatória, como realização máxima de todas as mulheres.

O comum é a louvação da heroína como cuidadora (dos filhos, do marido/companheiro, dos doentes, da casa). A heroína Maria do Carmo e também Júlia na novela seguinte da rede Globo denominada Belíssima são imagens maternas santificadas. Mas, também não há muita alternativa para as vilãs, que, se por um lado, convivem bem com sua sexualidade, por outro lado têm destino certo: morrem no capítulo final da novela....

A idosa pode ter vida sexual prazerosa desde que compre o sexo, como foi o caso de duas mulheres na novela citada, Belíssima. Já para a Juventude a situação, em geral, é de classe, se negra e pobre, em geral é promíscua. As heroínas, sempre quietas e submissas, tendo um bom comportamento, são premiadas ao final da novela com um bom casamento.

Existe a imposição de um modelo sexual dominante considerado natural repetido à exaustão para heroínas e vilãs que reproduz preconceitos porque baseados na repressão sobre a sexualidade feminina e porque não levam em conta as especificidades da mulher e sua situação histórica, A avaliação do grau de cumprimento do papel social da mulher é feita a partir de valores como sua honra, honestidade. A perspectiva televisiva é conservadora ignorando ser a sexualidade uma construção histórica e cultural (fatores familiares, tradições e práticas religiosas) e não sob o prisma da cultura ocidental cristã e judaica da idéia do paraíso perdido, do perdão e da culpa e da repressão.

É divulgado um padrão de beleza física, tendo como requisito básico a magreza. A ironia é que a novela se propõe a discutir o assunto, porém é ela mesma que divulga e propaga um tipo ideal de corpo de mulher. O mundo contemporâneo fala em pluralidade e diversidade,mas a beleza, na televisão tem padrão único, com os obesos excluídos do mundo, em uma gritante contradição com um aumento no mundo dos obesos.

Nos telejornais norte-americanos, não há mulheres idosas, o que,de resto, salvo raras exceções é também o que ocorre no Brasil.

As novelas televisivas não focam, exceto de forma muito superficial, a diversidade dos tipos físicos, dos modelos sociais, das profissões exercidas pelas mulheres. Como é possível se ver retratada em um modelo padronizado que não reflete a imagem e realidade de milhares de mulheres do país?

As heroínas das Novelas das oito, hoje das nove, há quase trinta anos, não se realizam profissionalmente sem o casamento ou sem uma mínima ajuda masculina. As mulheres raramente são vistas trabalhando. ( somente em situações emergenciais ou para compor renda da família (Maria do Carmo, na Novela das Oito/Nove de 2005, e Katina em Belíssima, na novela de 2006). Nesta última, a heroína,neta de Bia Falcão assume a empresa da família, mas assim que se casa passa a empresa para o marido. Poder-se-ia dizer que não há razões dramáticas para mostrar alguém trabalhando, mas é certo que os homens têm no drama televiso visibilidade trabalhando,,.( restaurantes, academias de ginástica, salas de artes e como empresários)

Dá-se naturalidade ao trabalho das empregadas domésticas, sem horário para descanso e encerramento de suas atividades. Em geral não têm fala.

Mulheres com outras imagens, a saber, como trabalhadora, como militante, com autonomia sobre o seu corpo e situação profissional, com físicos e belezas estéticas diferenciadas são muito raras, somente nos chamados programas especiais, o que, é ruim, porque então as mulheres, se tornam também especiais, ou seja, fora dos padrões de normalidade.

O certo é que não se tem contemplada a diversidade: dos tipos físicos, dos modelos sociais, das profissões exercidas pelas mulheres. Como é possível se ver retratada em um modelo padronizado que não reflete a imagem e realidade de milhares de mulheres do país?

O direito copia preceitos da Igreja, depois os recria para o seu campo, Durante décadas castigou as mulheres deixando de punir os crimes de gênero bem como ignorando a violência doméstica contra a mulher. O uso dos canais de televisão por determinação constitucional é uma concessão pública e o espaço eletromagnético é do povo, portanto, o Estado tem que ter políticas públicas preservando a imagem de cinqüenta e dois por cento da população brasileira. Não pode ser permissivo quanto à reprodução da discriminação da mulher.

Os direitos das mulheres são difusos e coletivos, constitucionais e internacionais e também direitos humanos. As denominações não são meros nomes jurídicos, implicam em respeito e defesa a tais direitos junto as poderes públicos, através de denúncias, ações coletivas, civis públicas, tendo como sujeitos de sua história, de seus direitos e interesses, não só esta ou aquela celebridade, mas sim mais da metade da população brasileira.

Assim, a realidade da programação televisiva tem que ser pensada não só de forma metafísica ou filosófica, ou do ponto de vista crítico no campo das artes e da estética. É preciso pensar a sua transformação.

No capitalismo, é de se reconhecer, muitas são as dificuldades no que se refere à defesa da imagem da mulher na mídia, porque o sistema tem como centralidade o lucro, portanto a idéia é vender os produtos, seres humanos ou pedaços deles, o próprio planeta se possível, e também porque os meios de comunicação, são em geral, correias de transmissão do Estado posto no país. Sabemos que TV socializada depende da socialização dos meios de produção.Entretanto,não se pode ignorar que a luta das mulheres tem avançado ainda que nos marcos do capitalismo: vitórias foram e estão sendo contabilizadas.

Quando se examina a questão do controle social das grades das redes de TV, estas logo se insurgem alegando a impossibilidade de qualquer restrição porque tal fere o direito à liberdade de expressão, de pensamento e de criação artística. Não toleram o controle social. Mas, o que aqui se defende é a democracia do mundo das comunicações.Não há qualquer sugestão no sentido de impedir a liberdade artística de criação e veiculação de imagens e mensagens.

Porém se questiona: de que democracia se está falando? A verdadeira pressupõe a defesa, pelos interessados, de seus valores de classe, culturais, éticos e morais, não sendo, portanto, aquela que humilha e que coloca a mulher em uma constante relação de subordinação e inferioridade, que leva à baixa-estima, que fere a dignidade da pessoa humana em uma grade programática televisiva que atinge milhões de mulheres (com certeza mais da metade da população brasileira). A quem serve uma programação na qual se reproduz, e se reforça a proposital confusão entre um corpo e um carro ou uma garrafa de cerveja? A televisão tem que atender às necessidades humanas, à diversidade cultural, sempre sem perder o respeito ao ser humano, e, é dessa liberdade de produção que aqui se trata. Há que ser levada em conta a nossa diversidade.

A liberdade de informação, de produção cultural, é garantida pela Constituição, mas ela própria estabelece limitação para tais direitos.

As mulheres somos movidas pela idéia da transformação, com noção de historicidade. Como sujeito histórico estão nesta luta contra a forma pela qual o mundo televisivo retrata a mulher, sem que se possam reconhecer nas imagens apresentadas impondo-lhes padrões estéticos, ignorando diversidades e muitas vezes humilhando-as, sem que tal signifique, de forma alguma, qualquer impedimento quanto às formas de criação artística, de pensamento, ou de produção cultural : busca-se, na verdade, uma diversidade que está posta na realidade.Não somente a celebridade, afinal, tem direito à preservação de sua imagem, qualquer mulher tem este direito...

Nota : A partir de estudos e pesquisas, as entidades feministas, e dentre elas, as mulheres do PCB, ingressaram com pedido em São Paulo, junto ao Ministério Público Federal requerendo, contra todas as redes de televisão, a representação da nossa diversidade.A Promotoria concordou em receber o pedido e o procedimento está em pleno andamento.

Mercedes Lima
Coletivo de Mulheres Ana Montenegro
Membro do Comitê Central do PCB

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quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O CONSUMO É UM VILÃO?

Na tese sobre o Socialismo, ponto 59, são citados, como “problemas e limitações do sistema” “... a pouca variedade, baixas disponibilidade e qualidade dos bens de consumo duráveis e mesmo dos não duráveis à venda, da baixa qualidade de diversos setores de serviços, como restaurantes, lojas de varejo, serviços e outros. Também são reconhecidos os problemas advindos da estrutura de planejamento centralizado, em geral, como a tendência ao desperdício por parte das empresas, dos desequilíbrios entre a oferta e a demanda, à morosidade na introdução de novos produtos e processos na produção ...”.
No ponto 83 está dito que “... a busca do atendimento a necessidades de consumo à moda “ocidental” pode ser citada como uma causa importante da derrota política sofrida.” Em 86 é dito que “... a disputa pela hegemonia política e ideológica perderia terreno para a pressão pelo consumo, para a alienação.”
Enfim, o “consumo” é ora visto como vilão, ora “as baixas disponibilidade e qualidade dos bens de consumo” é que é o vilão. Então temos que procurar entender de que consumo se trata.
Não há dúvida de que temos que combater o “consumo à moda “”ocidental””, que deve estar identificado com o consumo de bens supérfluos, que não podem ser estendidos a toda a população, geralmente ligado a grandes desperdícios.
Algum reacionário “americano” disse que “para acabar com o comunismo, bastaria distribuir o catálogo da Sears em Moscou”. De fato, a propaganda do modo de vida consumista podia impressionar soviéticos com baixo nível de formação política. E não só soviéticos: um noticiário mostrava um alemão oriental feliz com a queda do muro, pois agora ele poderia ter uma lata de “sopa campbell”.
É verdade que muitos produtos soviéticos tinham baixa qualidade. Tive uma câmara fotográfica Zenit, com excelente óptica mas que não suportou o clima tropical, sofrendo rápida corrosão de algumas peças e apodrecimento de uma cortina de tecido. Um amigo, Celso Araújo, recebeu de um camarada de Moscou uma amostra de canetas e lapiseiras russas para ver se era possível estabelecer uma representação comercial no Brasil: a qualidade era tão baixa que não era possível.
Por outro lado, um excelente produto soviético foi bastante distribuído no Brasil: livros. Minha formação na Politécnica foi muito ajudada por ótimos livros técnicos que eu comprava na Livraria Tecnocientífica. E também livros mais diretamente políticos que contribuíram para minha formação mais geral.
Então há produtos em que os soviéticos eram muito bons. Foram pioneiros na televisão a cores, mas não tiveram capacidade de conquistar um mercado, concorrendo com os japoneses. Produziram o Niva, um bom carro com tração nas quatro rodas, mas pouco exportaram pois não tinham estrutura de assistência técnica. Produziam caminhões que venciam o Raly Paris – Dacar.
Uma amiga esteve em Moscou e procurou uma panela para cozinhar em seu apartamento, onde estava sozinha. Só encontrava, no mercado, panelas enormes, provavelmente dimensionadas por algum burocrata da indústria do alumínio que tinha que “mostrar serviço” em toneladas, ou algum "planejador" que considerou o tamanho médio das famílias, dando razão ao idiota que associa "planejamento centralizado" à "tendência ao desperdício". Ela, como física, calculou o desperdício de energia causado pelo aquecimento de tanto metal desnecessário, na produção da panela e na produção da refeição. De fato, ali havia problemas, mas não "advindos da estrutura de planejamento centralizado" e sim de um mau planejamento.
Ficou famosa a discussão entre Nixon e Khruchev sobre a validade de um espremedor de laranjas, pois Khrushev achava que bastava uma faca. Claro que ele tinha razão em se tratando de uma laranja, mas sendo uma dúzia, Nixon começava a ter vantagem.
Precisamos entender que um certo nível, quantitativo e qualitativo, de consumo é parte da qualidade de vida da humanidade, objetivo fundamental de qualquer comunista. E os soviéticos falharam nesse desenvolvimento, talvez por associarem a “pressão pelo consumo” com a “alienação”.
Os soviéticos falharam, de forma geral, na educação do povo, isto é, na educação política. A educação política deveria desenvolver um espírito crítico, inclusive para o consumo. O cidadão soviético comum tinha que ter, despertada em si, a consciência de que o consumismo irrefreado, provavelmente representado pelo catálogo da Sears, era estúpido, não só dos pontos de vista econômico e ecológico mas do ponto de vista humano. Por outro lado, o dirigente soviético comum tinha que ter, despertada em si, a consciência da necessidade de uma grande indústria de televisores ou geladeiras de boa qualidade e baixo custo. Tiveram a atitude correta de desenvolver um excelente sistema de transportes públicos, do metrô de Moscou à Aeroflot, desprezando a idéia muito “americana” e estúpida de um carro para cada família. Mas o cidadão comum continuou querendo o carro, pois não tinha a educação política, crítica, para o consumo. (Talvez a solução intermediária tivesse sido o maior desenvolvimento das belas motos Ural, com side-car, as únicas motos com tração nas duas rodas).
Não há dúvida de que a qualidade de vida está associada à qualidade do consumo. E a qualidade do consumo tem que ser definida socialmente. Em primeiro lugar, a qualidade não implica quantidade. É necessário que haja uma boa distribuição da capacidade de consumo, evitando-se o que é comum no “ocidente”, de poucos consumirem demais. A qualidade dos produtos consumidos (incluindo serviços) deve ser controlada socialmente, dos produtos alimentícios aos eletrônicos. As agências de controle devem ser poderosas, controlando as empresas (e não o contrário, como é comum no “ocidente”). Normas técnicas são importantes para o controle social da qualidade, e as normas soviéticas GOST (pelo menos algumas com que estive trabalhando) são excelentes.
É claro que a educação política não deve despertar apenas o espírito crítico, pois apenas criticar é muito fácil e não leva a nada. Deve ser buscado o espírito de cooperação e de investigação, de forma que a crítica a determinados consumos seja abalizada, seja combinada com posturas ecológicas e econômicas.
O papel do mercado é um ponto crítico. No socialismo tem que continuar a haver o mercado. Não no sentido "ocidental" a que estamos acostumados, em que o "mercado" (leia-se "o capitalista") controla o consumidor através da propaganda enganosa e da educação alienante. "Na guerra e na publicidade, a primeira vítima é a verdade", essa é a regra no "ocidente". O mercado, no socialismo, deve ser um mecanismo de planejamento e distribuição dos produtos do trabalho. O planejamento centralizado e democrático, no sentido leninista, deve envolver o mercado. Deve basear-se em informação objetiva sobre as necessidades reais dos consumidores, ligadas ao desenvolvimento de sua qualidade de vida, e por outro lado, em informação ao consumidor sobre os produtos, sem propaganda, crítica, permitindo uma participação dos consumidores no planejamento, na análise de custos econômicos, sociais e ecológicos. O problema é que a democracia foi substituída pela burocracia.
Ernesto
setembro 2009