domingo, 31 de julho de 2011

O imperialismo e seu interesse na Líbia


Ataques aéreos são a principal arma com que as potências ocidentais contam para controlar o Oriente Médio e o sul da Ásia, sem ter de pôr soldados em terra, onde as mesmas potências podem sofrer graves baixas, além de humanas, também políticas. Grã-Bretanha, França e EUA só têm poder aéreo para fazer guerra contra a Líbia, que se arrasta há quatro meses. Os EUA também estão ampliando a ofensiva aérea no Iêmen, onde a CIA deve começar a operar à distância os aviões-robôs drones, sem soldados em terra; e prosseguem os ataques de aviões-robôs também no noroeste do Paquistão. Também no Iraque, de onde se espera que os EUA se retirem em breve, a população da cidade de Amarah, semana passada, foi aterrorizada por ataques de jatos bombardeiros.
O emprego de forças aéreas como policiais coloniais na Região tem história longa e sangrenta, e sempre, no longo prazo, mostrou-se ineficaz. O piloto da OTAN, que bombardeou Ain Zara, ao sul de Trípoli, no início desse mês com certeza jamais ouvir contar que seu ataque aconteceu quase exatamente 100 anos depois de a mesma cidade ter sido atingida por duas bombas lançadas de um avião italiano, em 1911.
O ataque aéreo italiano foi o primeiro da história, lançado pouco depois de a Itália ter invadido o que depois viria a ser a Líbia, durante um dos muitos conflitos com o Império Otomano. O primeiro voo de reconhecimento militar tomou uma rota próxima de Benghazi em outubro de 1911 e dia 1º de outubro o subtenente Giulio Gavotti tornou-se o primeiro aviador a despejar bombas. Voou baixo sobre um campo turco em Ain Zara e ali despejou quatro granadas de 4,5lb que levava numa sacola de couro no cockpit. Os turcos protestaram que as bombas de Gavotti atingiram um hospital e feriram vários civis.
Eu estava em Bagdá durante o bombardeio dos jatos norte-americanos em 1991 e depois, novamente, durante a operação “Raposa do Deserto” em 1998. Acocorado num canto do meu quarto de hotel, vendo as colunas de fogo surgirem pela cidade e a patética reação do fogo antiaéreo, foi experiência limite. Por outro lado, encurralado num abrigo a oeste de Beirute durante as guerras civis, foi ainda pior, em certo sentido, porque durou mais tempo e tudo era menos previsível. Em Bagdá, eu supunha que os norte-americanos soubessem contra que alvos atiravam, se por mais não fosse, por razões de ‘Relações Públicas’. Mas minha confiança logo acabou, quando mataram cerca de 400 civis num abrigo em Amariya.
Por mais assustador que seja sentir-se alvo de bombardeio aéreo, as forças aéreas sempre superestimam a própria importância. Jamais são precisos como alegam ser; a eficácia de ataques aéreos depende integralmente de informações de inteligência. Bombardear dá mais certo como arma para aterrorizar civis; como arma de punição generalizada. Contra soldados bem preparados, como os guerrilheiros do Hezbollah, os bombardeios aéreos sempre funcionaram mal.
A desastrosa aventura de Israel no Líbano poderia bem entrar para a história como a mais espantosamente ineficaz guerra aérea de todos os tempos, não fosse o dia em que França e Grã-Bretanha resolveram aliar-se àquelas milícias entusiásticas, mas sem qualquer treinamento, para derrubar o coronel Muammar Gaddafi.
Não começou assim. Quando os aviões da OTAN atacaram pela primeira vez, foi apenas para impedir que os tanques de Gaddafi avançassem pela estrada, de Ajdabiya rumo à Benghazi dos ‘rebeldes’. Esses ataques foram efetivos. Mas o objetivo foi repentinamente alterado, e a coisa converteu-se em guerra sem prazo para terminar para derrubar Gaddafi; a OTAN, então, passou a dar apoio aéreo aos ‘rebeldes’. Muito parecido com o que fizeram as forças imperiais francesas na África Ocidental, é espantoso que essa aberta intervenção estrangeira contra país soberano ainda não tenha sido adequadamente criticada na Grã-Bretanha.

Os ‘rebeldes’ sempre foram muito mais fracos do que seus patrocinadores da OTAN divulgaram. Claro que quem queira pode reconhecê-los como legítimo governo da Líbia, mas não é o que pensam os líbios. O grupo internacional Crisis Group, em geral sempre bem informado, diz que um item chave “na capacidade de Gaddafi para permanecer em seu posto sem oponentes no oeste da Líbia é o número ínfimo de defecções, até agora, entre as principais tribos que, tradicionalmente, são aliadas do regime”. A verdade é que uma OTAN dividida escolheu um dos lados de uma guerra civil na Líbia – exatamente como fizera antes no Afeganistão; e como EUA e Grã-Bretanha fizeram no Iraque.
Em ataques aéreos, a primeira semana é, quase sempre, a melhor. Ao final de uma primeira semana de ataques bem planejados e bem executados, os alvos mais expostos do inimigo já devem estar destruídos; nesse momento, o inimigo já aprendeu a esconder-se, dispersou as forças e evita expor-se como alvo. No caso da Líbia, as tropas pró-Gaddafi começaram a usar caminhões velhos com uma metralhadora pesada, pela retaguarda dos rebeldes. A OTAN atingiu várias vezes os próprios aliados, com efeitos devastadores.
Até agora não houve na Líbia ataque aéreo da OTAN com morte de grande número de civis. Depois que isso aconteceu pela primeira vez no abrigo de Amariya em Bagdá em 1991, a seleção de alvos passou a ter de ser confirmada pelo próprio comandante do exército, Colin Powell; e não houve outros ataques aéreos contra a capital. Os generais da Força Aérea costumam elogiar a precisão de suas armas maravilhosas, capazes de atingir alvos pontuais minúsculos. Mas só muito raramente explicam que essa ‘precisão’ depende de informação de inteligência também muito precisa.
Essas informações de inteligência são, quase sempre, confusas. Eu estava em Herat, no oeste do Afeganistão em 2009, quando jatos norte-americanos mataram 147 pessoas em três vilas ao sul. As bombas pulverizaram as casas de tijolos de barro e destroçaram os moradores, cujos cadáveres foram recolhidos aos pedaços. Naquelas vilas, em território ‘profundo’ dos Talibã, alguns veículos norte-americanos e afegãos haviam sido emboscados; assustados e sem saber o que fazer, os soldados requisitaram apoio aéreo. Aos gritos de “Morte aos EUA” e “Morte ao Governo”, sobreviventes enfurecidos recolheram numa caçamba os restos dos mortos e, com a caçamba atrelada a um trator, levaram os cadáveres até o gabinete do governador em Farah.

A resposta do secretário de Defesa dos EUA, Robert Gates, àqueles eventos, foi dizer que os Talibãs haviam invadido as vilas, jogando granadas. Mentiras desse tipo podem ter algum efeito interno, nos EUA, mas enfureceram ainda mais os afegãos, que, diariamente, viam pela televisão as crateras abertas pelas explosões. A campanha aérea na Líbia terminará em desastre semelhante? Já é pequena a tolerância nos EUA e na Grã-Bretanha em relação à guerra na Líbia. E qualquer notícia de morte em massa de civis pode gerar indignação pública em toda a Europa e nos EUA.
Desde quando, há 100 anos, quando o subtenente Gavotti jogou aquela granadas pela janela do cockpit, os governos ocidentais têm-se deixado seduzir pela ideia de que podem vencer guerras só com aviões – hoje, os aviões-robôs drones tripulados à distância. Parece ser guerra barata, que não compromete soldados nem os expõe a riscos em campo. Tarde demais descobre-se, como já se vê hoje na Líbia, que só muito excepcionalmente se vencem guerras pelo ar.

sexta-feira, 22 de julho de 2011

“Nenhuma conquista se acrescentou ao rol dos direitos dos trabalhadores com o PT no poder”




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Entrevista com Ronald Barata
Como histórico lutador popular, o fundador da CUT e ex-presidente do sindicato dos bancários Ronald Barata observou de lugar privilegiado a evolução política do país e a trajetória das grandes lutas populares. Desiludido com o PDT, no qual escreveu importantes páginas ao lado do líder Leonel Brizola, mas ainda empunhando as bandeiras que nortearam toda sua história, concedeu uma longa e reflexiva entrevista ao Correio da Cidadania.
De início, fala de seus atuais esforços, de estudo da história dos movimentos sociais e populares do final do século 19 e início do 20, motivado pelo grande valor dos primórdios de nossa organização da luta de classe. Com isso, mantém seu fogo aberto contra as centrais sindicais hegemônicas, pois ressalta que elas abandonaram diversas lutas trabalhistas de forma absolutamente ilustrativa de seu corrompimento.
Como exemplo, lembra da convenção 158 da OIT, que regula a demissão imotivada, e outras pautas convenientemente esquecidas, “pois se a pessoa se sente segura no emprego, vai se interessar pela vida sindical, o que os pelegos não gostam”. Barata, atualmente no Movimento de Resistência Leonel Brizola, também é engajado nas discussões sobre a previdência, cujo déficit ele desmistifica, afirmando que o governo só acabará com o fator previdenciário quando encontrar outra forma de “assaltar o segurado”, a fim de desviar os recursos previdenciários de sua finalidade.
Além disso, Ronald Barata resgata detalhes da história de ascensão de Lula como líder sindical nas greves dos anos 70, expondo nuances pouco conhecidas a respeito da maior referência política de nossas classes populares. De acordo com suas palavras, desde a época da ditadura o ex-presidente mostrava cordialidade e capacidade de interação com agentes de governo e também estrangeiros, como mostra sua relação com o sindicato AFL-CIO, dos Estados Unidos, “braço sindical da CIA para ações criminosas e de contra-revolução”.
No final, lista questões imprescindíveis para a atual luta política da esquerda, em escala global e local, sugerindo reformas que ainda estamos longe de ver, mas acreditando que no final os ‘indignados’, já em marcha em vários cantos do mundo, prevalecerão.
Correio da Cidadania: O que te levou a aprofundar pesquisas sobre a história dos movimentos sociais e populares do país no início do século 20?
Ronald Barata: As heróicas greves operárias, como ficaram conhecidos os movimentos do final do século XIX e do início do século XX, devem ser sempre lembradas, não só pelos belos exemplos de espírito de luta, de solidariedade e de organização, mas também pelos outros ensinamentos que propiciam. Sem nenhuma legislação de proteção, trabalhando em jornadas de 14 e 16 horas diárias, sem repouso semanal, sem recursos financeiros, sob monstruosa repressão, dificuldade de comunicação etc., lograram grandes movimentos com greves que arrostavam todo o poderoso aparato repressivo, que incluíam prisões, torturas, seqüestros, assassinatos, degredo, expulsão de estrangeiros grevistas etc.
Os 13 governos da República Velha eram instrumentos da classe dominante, a oligarquia agrária. Os trabalhadores forjaram organizações, como a Federação de Trabalhadores do Rio Grande do Sul em 1898. Fundaram sindicatos, ligas e uma central sindical em 1906, a Confederação Operária Brasileira (COB), que se filiou à revolucionária Associação Internacional de Trabalhadores (AIT), a Primeira Internacional.
Correio da Cidadania: Como o senhor analisa a atual situação do mundo do trabalho no Brasil, no contexto de quase uma década de Partido dos Trabalhadores no poder?
Ronald Barata: Nenhuma nova conquista se acrescentou ao rol dos direitos dos trabalhadores. A intensa propaganda induz a pensar que os trabalhadores vivem uma fase de pleno emprego, aumento do poder aquisitivo e garantia no emprego. Ora, mais da metade da mão-de-obra está na informalidade (eufemismo para ilegalidade), sem a proteção da legislação trabalhista. Sem férias, sem previdência, sem FGTS. A terceirização disseminou-se tanto no setor privado como nos serviços públicos, causando assustadora precarização, que aumenta os acidentes de trabalho.
Os trabalhadores formais são atingidos pela elevadíssima rotatividade da mão-de-obra que alcança 37% dos trabalhadores com vínculo empregatício, sendo que dois terços dos demitidos não completam doze meses no mesmo emprego e destes 40% não atingem seis meses. Oitenta por cento do total não completam dois anos. Há um enorme contingente trabalhando em condições degradantes. Um instrumento adequado para combater isso, a Convenção 158 da OIT, não está em vigor. O desrespeito à jornada de trabalho é rotina e os acidentes de trabalho viraram banalidade, principalmente no setor elétrico e na construção civil.
Os órgãos fiscalizadores do governo não atuam convenientemente. Só o Ministério Público do Trabalho que tem tido melhor desempenho.
Correio da Cidadania: Como definiria, ademais, a atuação do governo petista na mediação do eterno conflito Capital x Trabalho?
Ronald Barata: Não há prática de mediação no governo, mas domínio, através da cooptação da maioria dos organismos sindicais de trabalhadores, isto é, submissão que anula esses órgãos, tanto as centrais sindicais como sindicatos. A maioria dos dirigentes abandona as lutas em defesa dos trabalhadores e vive atrás de “boquinhas” nos governos em qualquer nível, nas estatais, nos fundos de pensão.
O governo conseguiu anular o poder de mobilização dos organismos sindicais. O Ministério do Trabalho e Emprego vive uma paralisia impressionante. É apenas órgão carimbador da criação de novas entidades sindicais, mas o ministro vive arrotando vitória pela criação de novos empregos. Omite as demissões. Além do mais, quem cria ou anula empregos é a macroeconomia, o Ministério do Trabalho é apenas catalogador das demissões e admissões, através do CAGED (Cadastro Geral de Empregados e Desempregados).
As greves que têm ocorrido, apesar das centrais e dos sindicatos, como nas hidrelétricas, no sul da Bahia etc. e movimentos como o dos bombeiros do Rio de Janeiro surpreendem os governantes e têm recebido impressionante solidariedade da população.
Aliás, apesar de qualquer mediação, esse é um eterno conflito que se agravará, apesar da atuação dos organismos patronais para neutralizar os movimentos de trabalhadores.
Correio da Cidadania: E pensando mais globalmente, como vê a questão do trabalho no mundo?
Ronald Barata: A crise do capitalismo já produziu desemprego elevadíssimo e continuará aumentando. A precarização do trabalho atinge todo o mundo. O desenvolvimento da tecnologia, a informatização e a robótica dispensam a participação do trabalhador em várias tarefas. É o desemprego estrutural, que não está presente apenas nos países periféricos, já alcança os países centrais; é o resultado de uma política organizada e implementada pela ditadura do mercado, que drena as riquezas para os bancos e o sistema financeiro.
A crise moral e ideológica nos movimentos sindicais, que leva os dirigentes ao oportunismo e à corrupção, não é exclusividade do Brasil. Os sistemas eleitorais vigentes nos países capitalistas permite a manipulação das populações e estamos assistindo a vitória de partidos de direita em vários países. Ocorre que as massas estão reagindo, independentemente dos organismos sindicais e dos partidos. Basta olhar para a Espanha, a Grécia. O agravamento da crise e sua disseminação, o desemprego, a facilidade de comunicação, levarão a que mais reações populares aconteçam. Não vai ficar somente na Europa e nos países árabes.
Correio da Cidadania: Quanto à atual conjuntura da esquerda e dos movimentos sociais no Brasil, como as avalia?
Ronald Barata: Partidos políticos tradicionais de esquerda, como o PT, o PSB e o PDT, transformaram-se; hoje são apenas balcões de negócios. A metamorfose ocorrida no PT arrastou-os para políticas clientelistas, fisiológicas. Deles nada mais se pode esperar. O que há hoje de esquerda reside em pequenos nichos dispersos e sem força eleitoral.
A criminosa cooptação praticada pelos governos petistas praticamente destruiu a força de organização e mobilização dos sindicatos e dos movimentos sociais em geral. As milhares de ONGs, formadas desde o governo Sarney, que cresceram nos governos Collor, Itamar, FHC e foram incentivadas e ampliadas no governo Lula continuam sugando os tesouros estatais. São valhacoutos que se sustentam com o dinheiro público doado pelos governos. Ressalvadas as tradicionais exceções que prestam relevantes serviços, a grande maioria é dirigida por pessoas que visam apenas enriquecimento rápido. O mesmo ocorre com as quase seis mil OSCIPS (Organização da Sociedade Civil de Interesse Público).
Acho que vão surgir formas alternativas de organizações que mobilizarão os trabalhadores e as populações periféricas. Movimentos e outras formas já estão surgindo. Caminhando, mobilizando, participando, lutando, surgirão as formas de organização que superarão esse triste quadro em que estão os partidos e os movimentos sociais.
Essas organizações que estão surgindo devem realizar seminários, debates e outros eventos de politização, mas não ficar apenas nas salas. Devem ir para as ruas, apresentar as reivindicações, criar grupos nas redes sociais, buscar a unidade entre  que restou das esquerdas, os grupos e pequenos partidos que heroicamente estão resistindo.
Correio da Cidadania: O que pensa da relação do governo brasileiro com diversos tratados e convenções trabalhistas de cunho progressista, como, por exemplo, a convenção 158 da OIT (Organização Internacional do Trabalho), que trata das garantias dos trabalhadores em caso de demissão?
Ronald Barata: O maior problema para os trabalhadores é o desemprego. Destrói a auto-estima do desempregado. A rotatividade está cada vez mais rápida, mas o governo, que poderia propiciar um poderoso instrumento para mitigar essa criminosa prática do patronato, fecha os olhos e deixa que a exploração se exerça em total plenitude. Esse problema pode ser inibido colocando-se em vigor a Convenção 158 da OIT, que normatiza o término das relações do trabalho por iniciativa do empregador. Essa Convenção de 1982, assinada pelo Brasil, foi ratificada através do Decreto Legislativo nº 68 de 1992, assinado pelo presidente do Congresso Mauro Benevides. O governo brasileiro depositou a Carta de Ratificação em 5 de janeiro de 1995, passando a vigorar em 5 de janeiro de 1996. O Executivo deu publicidade ao Decreto Legislativo quando FHC assinou o Decreto nº 1855 de 10/4/1996. Cumpridas as formalidades legais, a Convenção passou a ter plena vigência. Eu mesmo, com os serviços do advogado Celso Soares, utilizei essa Convenção e consegui reintegrar 653 funcionários demitidos pela Junta Interventora do Banerj.
Entretanto, não resistindo às pressões da FEBRABAN e da FIESP, Fernando Henrique Cardoso editou o Decreto nº 2100 de 20/11/1996, denunciando a Convenção. Ora, era de se esperar que no governo do Partido dos Trabalhadores, com o PDT no Ministério do Trabalho e Emprego, essa Convenção voltasse a vigorar. Eu entreguei ao Carlos Lupi, antes de assumir o ministério, um trabalho sobre isso. Ele ignorou solenemente e o governo, para marcar posição, simplesmente remeteu uma mensagem ao Congresso que está rolando pelas comissões ou em alguma gaveta, apesar de o Decreto Legislativo não ter sido revogado. Além disso, a maioria que o governo dispõe no Congresso, se tivesse vontade política, já teria resolvido essa importante questão.
É estranho que o movimento sindical não se mobilize para isso. Será que não querem que o trabalhador tenha proteção contra demissão imotivada? É claro que se o trabalhador se sentir seguro irá participar da vida de seu sindicato, o que é temido pelos pelegos. Aliás, há caso de “dirigente” sindical comunicar ao patrão a presença de empregado querendo atuar. Repito: por que as centrais sindicais não lutam pela vigência desse instrumento?
Correio da Cidadania: Qual a sua avaliação sobre a gestão do famoso FAT (o Fundo de Amparo ao Trabalhador) em nosso país?
Ronald Barata: Esse Fundo, mantido com a arrecadação do PIS/PASEP, vinculado ao Ministério do Trabalho, destina-se ao pagamento do Seguro Desemprego, do Abono Salarial, da Formação e Intermediação de mão-de-obra e financiamento de programas de desenvolvimento econômico. Mantém e administra o PROGER (Programas de Geração de Emprego e Renda) e o PRONAF (Programa Nacional de Agricultura Familiar). É gerido pelo CODEFAT (Conselho Deliberativo do FAT), que tem representação tripartite e paritária: governo, empregadores e empregados. Arrecada vultosas somas, mas grande parcela escoa pelos ralos da má aplicação e da corrupção.
O FAT financia projetos voltados à infra-estrutura e setores estratégicos, como transporte de massa e turismo, através do BNDES. Entretanto, basta ver o noticiário para constatar os grandes malabarismos que o banco faz, dando fortunas a juros subsidiados para fusões e aquisições de empresas, até para algumas estrangeiras comprarem empresas nacionais. Concede financiamentos a juros subsidiados. Nem tudo é originado do FAT. Há aportes do Tesouro. Em apenas dois anos, o governo aportou R$ 230 bilhões nesse banco. Captou a juros de 12% e o banco emprestou a 6%. Fortunas fabulosas para empresas de telecomunicações, frigoríficos, empreiteiras comprarem outras empresas. Também emprestou para recuperar empresas em dificuldade por incúria ou por corrupção, como Banco Votorantin, Aracruz, Sadia etc. E a recente escandalosa operação anunciada com o grupo Pão de Açúcar. São privatizações mais escandalosas que as de FHC. Note-se que não há nenhuma reação das entidades sindicais que pertencem ao CODEFAT.
Os recursos que o CODEFAT distribui para cursos de qualificação profissional têm aplicação altamente questionável. Faz doações a ONGs, OSCIPS, sindicatos, Sistema S etc. Não se tem controle de sua eficácia e de como foi gasto o dinheiro. A maioria desses cursos não funciona e quando eu era da direção do PDT elaborei um projeto de criação de Escolas de Qualificação Profissional, com o Estado assumindo essa função que delega a entidades de competência questionável. Entreguei ao então presidente do partido, o ínclito Leonel Brizola, que o aprovou. Infelizmente, o governador do estado do Rio de Janeiro, que era do partido, logo depois se bandeou. Quando Lupi assumiu o Ministério, entreguei-lhe o projeto. Acho que foi jogado na lata de lixo. Sequer mandou que os órgãos técnicos do Ministério o examinassem. E bilhões de reais continuam sendo distribuídos a organizações que não possuem nenhum “know-how” e de probidade duvidosa. Como sempre, ressalve-se as exceções.
Correio da Cidadania: A previdência e o seu aventado déficit, tanto no que se refere ao regime geral como à previdência pública, são outro alvo constante de avaliações críticas, ressaltando o seu déficit e a necessidade de reforma. Qual a sua opinião quanto à veracidade dessas constatações, bem como à forma como vêm sendo divulgadas pela mídia?
Ronald Barata: Em 2006 fiz um livro que denominei “O Falso Déficit da Previdência”, provando que a Previdência é superavitária, apesar dos grandes assaltos que há décadas são praticados aos seus cofres. Desvios para a construção de Brasília, da Ponte Rio-Niterói, da Transamazônica e até para pagamento de juros da dívida.
O criminoso Fator Previdenciário, criado no governo do PSDB, permanece nos governos do PT/PMDB. É um atentado contra quem contribui por 30 e 35 anos e, na hora de se aposentar, sofre redução dos proventos. Agora o governo, cinicamente, afirma que pode acabar com o Fator se houver compensação, isto é, outra forma de assaltar o segurado.
O falso déficit é propalado para justificar a retirada ou redução de direitos. Para “comprovar” o déficit, fazem uma esdrúxula conta de chegar: cotejam o total de despesas com apenas a arrecadação proveniente da Folha Salarial, abandonando as outras receitas, como a da COFINS, da CSLL, das loterias e outras. Enfim, em linguagem bem popular, é uma escrotidão.
Correio da Cidadania: O que levou o PDT (Partido Trabalhista Brasileiro), assim como outros partidos de esquerda, como o PT (Partido dos Trabalhadores), a se afastar de suas orientações originais, de modo a tentar agora, por meio de militantes que ficaram isolados em seus partidos, uma reorganização mediante um contexto de supremacia do capital e do mercado?
Ronald Barata: Elementar, meu caro entrevistador. Basta ver a vertiginosa subida no nível de vida dos dirigentes. A Reforma Política que sai apenas a algumas gotas deveria impedir sigilo bancário de políticos com mandato eletivo, inclusive dirigentes dos partidos.
Correio da Cidadania: O que significou o governo Lula para o senhor?
Ronald Barata: Poxa, nessa vou precisar me estender. Embora cansativo, não vou perder essa oportunidade de rememorar alguns episódios que muitos já esqueceram. Vou transcrever trechos de um artigo que fiz em fevereiro de 2010. E para fundamentar as conclusões a que pretendo chegar, transcrevo trechos do livro “Jogo Duro” (Editora Best Seller, 1988), escrito pelo empresário Mario Garnero, que surfava nos bastidores da ditadura, foi amigo de generais presidentes, mas também angariou inimigos da sua mesma estirpe, como Francisco Dornelles, Elmo Camões, Lemgruber e outros tristes personagens. Testemunhou episódios que a mídia nunca divulgou. No livro, ele narra episódios “sui generis” sobre Lula e outras figuras importantes da ditadura e da Nova República. Entre as páginas 130 e 135 escreve sobre um bilhete que enviou a Lula.
Relata: “... tentei recordar ao constituinte mais votado de São Paulo duas ou três coisas do passado... (pois) o grande líder da esquerda brasileira costuma se esquecer, por exemplo, de que esteve recebendo lições de sindicalismo da Johns Hopkins University, nos Estados Unidos, ali por 1972, 1973... e a facilidade com que se procedeu a ascensão irresistível de Lula, nos anos 70, época em que outros adversários do governo, às vezes muito mais inofensivos, foram tratados com impiedade. Lula, não – foi em frente, progrediu....” E prossegue: “Lembro-me do primeiro Lula, lá por 1976, sendo apresentado por seu patrão Paulo Villares ao Werner Jessen, da Mercedes Benz e, de repente, eis que aparece o tal Lula à frente da primeira greve que houve na indústria automobilística durante o regime militar... Recordo-me de a imprensa cobrir Lula de elogios, estimulando-o, num momento em que a distensão apenas começava, e de um episódio que é capaz de deixar qualquer um, mesmo os desatentos, com um pé atrás. Foi em 1978... os metalúrgicos tinham cruzado os braços, e nós, da ANFAVEA, conversando com o governo sobre o que fazer... o Ministro Mario Henrique Simonsen informou que o presidente Geisel recomendou moderação: tentar negociar com os grevistas, sem alarido. Imagine: era um passo que nenhum governo militar jamais dera, o da negociação com operário em greve. Geisel devia ter alguma coisa a mais na cabeça. Ele e, tenho certeza, o ministro Golbery”.
Aliás, o banqueiro banido por um rombo de US$ 95 milhões foi reabilitado pelo governo em 2004, como principal figura em um seminário patrocinado pelo Banco do Nordeste, em Fortaleza, com a participação dos presidentes do Senado, José Sarney e do STF, Nelson Jobim, dos ministros Dilma Rousseff e Ciro Gomes e vários governadores.
Lula nem disfarçou sua aliança com grandes grupos econômicos, financeiros, com o agronegócio e com as velhas oligarquias, de Sarney, Severino Cavalcanti, Jader Barbalho, Collor, Renan Calheiros e ainda Bispo Rodrigues, Sergio Cabral...
Você quer dizer que um dos fatores que permitiu a Lula erigir-se líder grande líder das greves da época da ditadura por conseguir manter relações cordiais com o regime de repressão?
O povo que em 2002, acertadamente, escolheu o operário em vez de um liberal jamais poderia imaginar o comportamento pragmático do esquerdista no governo. Somente tendo conhecimento de sua secreta trajetória durante a ditadura passa-se a entender.
João Victor Campos, diretor cultural da AEPET (Associação dos Engenheiros da Petrobras), em artigo publicado no “Alerta Total” da Associação, afirmando que “em 1968 Lula cursou no IADESIL (Instituto Americano de Desenvolvimento do Sindicalismo Livre), escola de doutrinação mantida pela AFL-CIO (American Federation of Labor-Congress of Industrial Organizations), central sindical dos EUA”.
Tanto o IADESIL como a AFL-CIO ministram cursos contra-revolucionários de “liderança sindical”, com maquiagens para parecer de esquerda, mas servem ao imperialismo norte americano. Ressalte-se que esse Instituto instalou-se em São Paulo no ano de 1963, quando a CIA preparava o golpe de 1964. Assumiu abertamente sua participação na derrubada do governo Salvador Allende. A AFL-CIO é o braço sindical da CIA para as ações criminosas em todo o mundo.
Lula tornou-se amigo de Stanley Gacek, diretor da AFL-CIO para América Latina, que o acompanhou em várias visitas a Washington. Esse terrível representante estadunidense, na ocasião já aposentado, estava no palanque em São Paulo, na festa da vitória de Lula em 2002.
Eleito em 2002, ainda antes da posse, logo após reunião com George Bush, anunciou que entregaria o comando da economia ao banqueiro Henrique Meirelles, ex-presidente internacional do segundo maior credor do Brasil, o BankBoston. No final de 2002, passou um final de semana na fazenda, em Araxá, da família Moreira Sales, testa de ferro da multinacional Molycorps, que explora e exporta, a preço de banana, o nosso nobre mineral nióbio.
Abandonando as ideias da esquerda, governando segundo os princípios da economia capitalista e transformando o Bolsa-Escola em Bolsa-Família, assumiu as bandeiras do PSDB, que ficou sem discurso oposicionista. E o PT e o PSDB disputaram as eleições em aliança em mais de mil municípios. Verdadeira esquizofrenia tomou conta dos ex-combativos dirigentes sindicais, que hoje conformam uma nova oligarquia que apenas disputa cargos públicos, abandonando a classe trabalhadora, enquanto o PT sofreu profunda metamorfose.
Lula colocou-se na dependência do PMDB para aprovar projetos no Congresso Nacional. Sem sequer disfarçar, apelava para formas de cooptação, de fisiologismo e de corrupção que condenava quando era oposição. Conseguiu aliança com partidos que se tornaram simples satélites e submeteu instituições republicanas importantes a um processo de desmoralização, especialmente a Câmara, o Senado e o TSE.
E essa relação cordial, com traços de subserviência, se estenderia também aos agentes externos, inclusive que patrocinaram a ditadura, reproduzindo-se hoje nas relações internacionais?
O corolário foi uma série de escândalos de corrupção e radicais mudanças em partidos que abandonaram seus princípios em troca de benesses para apaniguados. No final do governo, na surdina, ressuscitou o Acordo Militar com os EUA, que Geisel havia denunciado. Fez isso depois que os EUA reativaram a IV Frota, que fora desativada em 1950, para policiar o Atlântico Sul e interferir no pré-sal.
Outro episódio importante, iniciado com FHC, mantido até hoje, mas que Lula certamente “não sabia”: o general-de-brigada da reserva, Durval Antunes de Andrade Nery, coordenador do Centro Brasileiro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra, denunciou a presença da Blackwater (empresa estadunidense de mercenários) em reservas na Amazônia e em plataformas de petróleo da empresa Halliburton, na costa do país. Dispõe de lanchas, ancoradouros, armas, aviões anfíbios etc. Atuam livremente na reserva Yanomani, enquanto um oficial do exército brasileiro lá só pode entrar com autorização judicial.
O general denunciou que a Halliburton mantém um de seus diretores na Agência Nacional de Petróleo (ANP), o que permite acesso a dados secretos das jazidas de petróleo. Vários dados sobre a reserva Tupi vieram a público, criminosamente. Afirmou que “membros fortemente armados da Blackwater já atuam em reservas indígenas brasileiras contando com bases fluviais bem equipadas”.
Outro fato digno de nota: vetou o artigo 64 da Lei nº 12.351/2010 (novo marco regulatório do petróleo), oriundo de emenda apresentada pelo Senador Pedro Simon, por inspiração do engenheiro Fernando Siqueira, presidente da AEPET, QUE PROIBIA A DEVOLUÇÃO DOS ROYALTIES pagos por quem produz petróleo. Quanto a bacias sedimentares, 41,7 mil km², ou seja 28% da área total da província do pré-sal, já foram concedidos, privatizados. FHC deu concessões nas diversas bacias petrolíferas, na extensão de 176,4 mil km², enquanto o governo Lula deu 349,7 mil km². Lula instituiu novo marco regulatório, a partilha, que é um avanço em relação ao sistema de concessões instituído por FHC. Mas vale apenas para o pré-sal. E não reinstituiu a Lei 2.004 do monopólio estatal do petróleo, que substituiria a entreguista Lei 9.478.
O general Golbery, um dos articuladores e planejadores do Golpe Militar, em ação coordenada pela CIA, foi quem planejou a ascensão de Lula e incentivou a criação do Partido dos Trabalhadores. Armou esquema para barrar os passos de Leonel Brizola na volta do exílio, para impedir que voltasse com possibilidades de assumir a presidência, excluindo-o da sigla PTB. Tentou impedir a posse de Brizola para o governo do estado do Rio, em 1982.
Mais importante do que meu pensamento foi o comportamento de ilustres brasileiros, fundadores do PT, que se desfiliaram do partido e denunciaram a insatisfação com os escândalos no governo e com a metamorfose do presidente. Cito alguns: Francisco de Oliveira, Cesar Benjamin, Plínio de Arruda Sampaio, Hélio Bicudo, Milton Temer, Marina Silva, Fernando Gabeira, Cristovam Buarque.
Correio da Cidadania: E o que espera de Dilma? Vai, de alguma forma, se diferenciar de Lula?
Ronald Barata: É um governo que se sustenta numa coalizão que é um saco de gatos, lagartos, lacraias e outros bichos. Partidos insaciáveis levam o fisiologismo ao extremo e a presidente não mostra competência de enfrentá-los. Acaba de render-se, prorrogando o pagamento de Restos a Pagar, exigência da base de apoio e que ela e o ministro da Fazenda sustentavam que não cederiam.
As vacilações foram expostas em diversos episódios; o último foi o do sigilo eterno de documentos ultraconfidenciais. Primeiro apoiou o fim do sigilo, depois rendeu-se a Sarney e Collor e afirmava que o sigilo eterno prevaleceria. E já mudou novamente.
Mantém a política econômica, tem projetos que agridem os direitos dos trabalhadores, principalmente os previdenciários, e continua com a firme aliança que Lula tinha com o agronegócio. Os banqueiros e as empreiteiras, os maiores financiadores de campanhas eleitorais, continuam se locupletando.
A queda do ex-ministro Palocci mostrou a profundidade das contradições da base, principalmente dentro do próprio PT. Sendo assim, o que esperar? Deve ser mesmo um mandato tampão.
Correio da Cidadania: O que o senhor enxerga como principais temas nacionais e internacionais que deveriam estar na linha de frente da luta política de esquerda, consideradas as possibilidades oferecidas pelo atual contexto histórico?
Ronald Barata: Em nível internacional, a luta anti-imperialista e pela mudança nos rumos da economia globalizada. Em nosso quintal, considero importante acabar com a autonomia do Banco Central, com a política de câmbio flexível e metas de inflação. Mas há também a Reforma Tributária e a Reforma Política, o restabelecimento do monopólio estatal do petróleo que deve ser estendido a todos os minérios. É preciso também rever a política de concessão de terras da Amazônia a estrangeiros.
Correio da Cidadania: Como vê, finalmente, a relação entre as bandeiras anticapitalista e socialista? Acredita que a primeira seja uma forma viável de substituir ou renovar a segunda, mais estigmatizada ao longo das últimas décadas?
Ronald Barata: Não acredito que haja relação entre os dois sistemas. Ao contrário. São conflitantes. A crise capitalista deve se aprofundar. Há economistas que afirmam ser essa crise terminal. Leonardo Boff corrobora essa tese em recente artigo. Fundamenta com a depredação que se faz do planeta, que está perdendo sua capacidade de recuperação e é um dos dois principais pilares do capitalismo. O outro sustentáculo, o trabalho, está sendo precarizado ou prescindido devido aos avanços tecnológicos. Entende que, por isso, não há condição de o capitalismo se manter.
Eu não disponho de conhecimentos para uma definição dessas. Porém, torço para que seja verdadeiro. E só poderá ser substituído por formas socialistas. Apesar da degradação dos partidos de esquerda e do movimento sindical, já surgem organizações que se preocupam com politização e mobilização das massas. Os insurretos da Espanha, da Grécia, do mundo árabe, da América Latina, a maioria de jovens, vão prevalecer.
Gabriel Brito é jornalista; Valéria Nader, economista, é editora do Correio da Cidadania.

Entrevista de Aleida Guevara, filha de Che Guevara, sobre as reformas em Cuba



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(entrevista a ELEONORA DE LUCENA)
Ela se declara apenas uma militante da base do Partido Comunista Cubano, mas carrega o sobrenome de um mito da esquerda. Aos 50 anos, a pediatra Aleida Guevara se ocupa em cuidar da memória do pai e faz uma defesa inflamada do modelo da ilha.
Nesta entrevista, ela expressa seu temor pessoal de que as reformas em curso na ilha que permitiram a venda de imóveis e carros afetem a consciência social da população, pois podem inflar o individualismo. No Brasil para dar palestras, ela fala de política e da herança de Che Guevara.
Rafael Andrade-28.06.11/Folhapress
Aos 50 anos, a pediatra Aleida Guevara se ocupa em cuidar da memória do pai e faz uma defesa inflamada de Cuba
Folha - Como vê o Brasil hoje?
Aleida Guevara - Para quem vem de fora é muito fácil analisar a situação. Para quem vive a realidade cotidiana é mais difícil. Por isso não é bom perguntar a quem vem de fora sobre a realidade do teu país, porque não tem base sólida para falar. Como trabalho com o MST há tanto tempo, uma das coisas que sempre tenho visto é a necessidade de repartir a terra, fazer uma reforma agrária profunda. Para que este país possa solucionar de verdade seus problemas de sua gente mais simples, do campo. Isso eu posso dizer. Mas, como o Brasil vai, só os brasileiros sabem. Vim participar da conferência de agroecologia em Londrina.
E como vão as coisas em Cuba?
Estamos em um momento de buscar solução a problemas reais que temos tido durante muito tempo. Há problemas atuais que o país vive por causa da crise econômica, que atinge todos os países do mundo. Estamos discutindo os problemas com todo o povo, analisando-os nos locais de trabalho, nos bairros. O congresso do partido analisou tudo o que resultou dessas reuniões populares e se chegou a um consenso de que vamos fazer algumas mudanças na economia familiar. Resolver um problema de família, de pessoas que estão sem emprego neste momento porque o Estado não pode seguir sustentando pessoas que trabalham sem produzir. Quando perdemos o campo socialista europeu, Cuba sofreu uma crise brutal e o Estado amparou todo mundo durante todo esse tempo. Agora a situação da economia interna melhorou. Portanto há possibilidades reais para que essas pessoas possam trabalhar independentemente. Não queremos desamparar os que não estejam trabalhando para o Estado. Por isso é que vem essa possibilidade de trabalho individual. Porque nós, pela Constituição, teríamos que analisar quais são os itens da Constituição atual que se chocariam com essas mudanças. Por isso toda essa análise popular, profunda. Se é necessário mudar algum item da Constituição, que o povo saiba o que se está fazendo e porquê. E o plebiscito que se tenha que fazer será faz mais rápido e mais fácil.
O que teria que mudar na Constituição?
Foi acordado na Constituição que Cuba é uma sociedade socialista. Dentro dessa sociedade socialista há normas, regras. Quando se diz agora que há pessoas que vão trabalhar por conta própria, pode ser alugar sua casa, o que não existia. Essas pessoas que agora estão trabalhando por conta própria, se quiserem outras pessoas para trabalhar, que seja pago um salário justo, por lei. Por exemplo: se quiseres alugar um quarto da tua casa e empregaste alguém para fazer a limpeza. Antes esta pessoa não estava protegida por nenhuma lei. Agora, com as mudanças, essa pessoa estará protegida também pelas leis do Estado cubano. Essas leis precisam ser implementadas na Constituição.
O último congresso do partido abriu possibilidade da propriedade privada de imóveis e carros...
Digamos que não é propriedade privada. Eu, por exemplo, se paguei por um carro, ele é meu. O problema é que eu não tinha direito de vendê-lo. Agora tenho. O que mudou é que é permitido ao cidadão que é dono de um carro vendê-lo legalmente. É sua propriedade, é seu direito. Como em relação a casas. Se uma casa é legalmente tua, tu podes vendê-la.
Mas isso é reconhecer a propriedade privada.
Dentro do que já existia, na propriedade individual. Que podes chamar de privada, se quiseres. É tua. O problema é legalizar essa propriedade para que você possa usá-la para o que quiseres.
A sra. não acha que isso se conflita com o princípio socialista?
Não. Isso não tem nenhum tipo de problema com os princípios socialistas. A questão não está em vender a tua casa ou o teu carro ou trocá-lo. Isso me parece que é muito bom que possamos fazê-lo livremente, sem nenhum tipo de trava. A questão está em que agora há trabalhadores por conta própria. Esses trabalhadores vão buscar o seu benefício pessoal. O meu temor pessoal como cidadã apenas eu não tenho nada a ver com a direção do governo cubano; sou uma médica cubana meu temor é que as pessoas que comecem a trabalhar para si mesmas percam um pouco a questão social, a consciência social. Vivendo numa sociedade socialista, nós trabalhamos para um povo. Quando tu começas a trabalhar para o teu bolso, para o teu bem estar pessoal, temos o risco de perder essa conexão social que mantivemos por toda a vida. Essa é a minha preocupação pessoal. O Estado socialista segue sendo socialista porque não há privatização nos grandes meios de produção. Isso não se tocou e não se vai tocar. O povo cubano segue sendo dono de tudo o que se produz no país. Podes ser dono do que tu fazes em tua casa, um restaurante, um salão de beleza, serviços. Mas os grandes meios de produção, tudo está com o Estado, que, portanto, é do povo. Nesse sentido não há nenhum tipo de mudança.
As reformas foram feitas para tirar do Estado o peso de pessoas que..
Exatamente. De pessoas que vão ficar sem trabalho pelo Estado, porque o Estado não pode seguir sustentando essa situação. Temos feito melhorias econômicas. Essas pessoas ficam livres de trabalhar para o Estado e ter o seu próprio trabalho. E o Estado sai dessa tensão de manter alguém que não estava produzindo.
O seu temor é que essa reforma, que pode ser lida como mais privatizante, afete a consciência social?
O homem pensa segundo vive. Essa é a preocupação, simplesmente. Se você está vivendo somente interessado em melhorar a tua casa, em melhorar a quantidade de dinheiro que tem no bolso, em melhorar a vestimenta, você se esquece que a escola infantil da esquina, onde seus filhos e netos estudam, precisa de uma mão de pintura. Você será capaz de deixar um pouco desse dinheiro para doar à escola? Se você é capaz de fazê-lo, eu calo a boca e sou feliz. Essa é a minha preocupação: que você perca essa perspectiva, que não se preocupe com a perspectiva de comunidade social, que é o que nós somos e pelo que seguimos vivendo.
Por que é difícil fazer uma renovação nas lideranças cubanas? Por que não há jovens lideranças?
Nosso ministro de educação superior tem 51 anos, não é tão velho.
Mas na liderança maior...
Vai se renovando. As pessoas que vão chegando, vão provando como são, como atuam, qual a capacidade. Isso está havendo com vários dirigentes. O chanceler de Cuba tem 50 anos. Para chanceler, é relativamente jovem. Vamos vendo como essa nova geração, a minha geração, vai ocupando uma série de lugares de direção no país. É uma questão que vai se fazendo pouco a pouco. A questão mais importante é do conhecimento de como elegemos a nossa gente. Nenhuma imprensa do mundo fala das eleições em Cuba.
Como a sra. responde aos que dizem que Cuba é uma ditadura, não há liberdade de imprensa?
É simplesmente uma falta de conhecimento total da realidade cubana. Nós temos eleições populares, muito mais democráticas do que qualquer outro país. Porque é o povo que elege diretamente os seus candidatos. Desde a base. Não há organizações políticas que digam: é esse, esse. É o povo quem diz. Uma reunião de vizinhos diz: fulano e fulano. E explicam porque propõem. Cinquenta por cento mais um da assembleia reunida têm que dar a aprovação. Se a pessoa é aprovada, ninguém pode derrubar essa aprovação. É uma decisão do povo. Então esse passa a ser candidato.
Mas o partido é único.
Mas o partido não tem nada que ver com as eleições. O partido é um partido dirigente, diretor da conduta social nessa sociedade, nada mais. Não tem nada que ver com as eleições. As eleições são de baixo, do povo. Nós elegemos o candidato ao município. As eleições ocorrem a cada dois anos e meio. A cada cinco anos essa assembleia municipal elege uma comissão eleitoral dentro de seus membros e começam a receber propostas das organizações de massa do país. Por exemplo: os camponeses têm uma organização de massas. Se nesse município há camponeses, eles têm direito a propor candidatos para a província e para a nação. Se há faculdades ou universidades, a organização de estudantes universitários tem direito a propor candidaturas a essa assembleia municipal. Assim, se há um hospital, o sindicato da saúde tem direito a fazê-lo; se há uma unidade militar, os militares têm direito há fazê-lo. Todas as organizações sociais que existem nesse território têm direito a propor candidatos à província e à nação.
A comissão eleitoral da assembleia municipal reúne toda essa informação e faz uma eleição. Faz uma cédula para a província e para a nação. Essa candidatura se discute no pleno da assembleia municipal. E a assembleia municipal tem que aprová-la em 100%. Se não a aprova, a comissão eleitoral tem que recomeçar o seu trabalho. Até que o município aceite essas candidaturas. Quando forem aceitas essas candidaturas, se apresenta a votação para o povo. Província e nação. O que aconteceu com a nação? Se tu deixas que o povo cubano diga realmente o que querem desde baixo para a nação, os históricos seriam sempre indicados. Todo mundo vai propor Fidel, Raúl, Ramiro Valdez. Gente conhecida, em quem se tem confiança e que se sabe que vão seguir o caminho da revolução.
Mas não é possível porque é preciso dar espaço a novas gerações. Por isso é que os dirigentes históricos somente poderiam ser propostos pelo seu município. Por exemplo, Ramiro Valdez somente pode ser proposto pelo município de Artemísia. Santiago de Cuba é o único município que pode propor Raúl e Fidel. Desde o início tivemos que fazer assim porque as pessoas tinham a tendência de indicar sempre Fidel e Raul.
Nossa assembleia tem 38% de mulheres. Uma percentagem importante de jovens. Está bastante equilibrada entre trabalhadores do campo e da cidade. Depois vamos às urnas e elegemos. Quando a assembleia está eleita pelo povo, se reúne e elege, dentro do seu seio, o presidente, secretário, vice-presidente, o conselho de Estado, os ministros. A assembleia nacional de Cuba e o Conselho de Estado tem que ser eleitos diretamente pelo povo.
Então não há um problema de renovação?
O problema está em que o povo cubano conhece a sua gente. Se tu conheces a tua gente, querem que sigam dirigindo. Se fizeram bem até agora, por que queres mudar? Ao contrário. O que as pessoas realmente temem é que poderíamos eleger um jovem neste momento que não tenha as possibilidades intelectuais que tem hoje, por exemplo, Raúl. Estamos seguros com ele. Nos sentimos seguros com ele. Por isso se elege. Quando não o tivermos, estaremos obrigados a buscar outras possibilidades. Por isso é bom ter ministros mais jovens para ver como se comportam. O povo pode dizer se esse agrada ou não. E pode pensar desde agora: esse ministro está trabalhando muito bem, é uma pessoa direita, é austero --isso observamos muito. Se são ministros que têm contato com o povo. Que as pessoas confiem em relação à sua atitude em relação à vida.
Como justificar a questão da oposição, dos presos políticos, as damas de branco?
Meu Deus! O conceito de preso político é do preso por suas ideias. Em Cuba não existem esses presos. Em Cuba existem presos por ações contra o povo. Ações de delito. Colocar, por exemplo, veneno na água de uma escola infantil é terrorismo. Esse está preso. Incendiar a telefonia de Cuba. Isso o que é? É uma ação terrorista.
Então não existem presos políticos; existem terroristas presos?
Existem terroristas. Existem os que fazem isso do ponto de vista econômico também. Porque vivemos com o bloqueio dos EUA. Nos últimos anos, eles têm aplicado a lei do bloqueio de outras formas mais sofisticadas.
Como?
A lei Helms-Burton fala que, se você tem uma empresa e quer ir a Cuba negociar, alugar uma casa, um edifício para implantar a empresa, você pode ser penalizado se esse edifício onde você colocou a sua empresa pertenceu a alguém que vive hoje nos EUA. Pela lei Helms-Burton os EUA podem penalizar essa empresa por U$ 5 milhões, 10 milhões por ocupar um lugar que pertenceu a um norte-americano. Imagina! Em Cuba as melhores residências pertenceram a essa gente dos EUA. Os 20 mil melhores hectares pertenciam aos EUA.
Com quem vamos negociar? Há empresas que se atreveram a fazer essas coisas. Há mercenários pagos diretamente pelos EUA e países europeus que se dedicam a dar esse tipo de informação ao FBI. Isso prejudica muito o nosso país. Muitas empresas, panamenhas, por exemplo, tiveram que sair porque foram penalizadas por isso. O povo cubano se prejudicou. Essas pessoas quando foram detectadas foram presas. Por fazer dano ao nosso povo. A maioria já esta praticamente livre. Por causa de um trabalho que alguns ministros espanhóis fizeram para libertar essas pessoas.
O embargo não mudou nada com Obama?
O bloqueio. A palavra embargo em espanhol significa que os EUA embargam nosso direito comercial com eles. Esse é um direito deles. Não protestamos contra isso. Protestamos quando os EUA tem o propósito de que nenhum outro pais do mundo comercialize livremente com Cuba. Isso é o bloqueio, fechar um país. Isso é o que estão fazendo conosco toda a vida. Com Obama, acreditávamos que, por ser o primeiro presidente negro na história desse país que é tão racista, esse homem teria outras perspectivas. Nos equivocamos. Obama responde aos interesses da grande indústria dos EUA. Não fez nenhuma mudança importante.
Ele entrou na presidência prometendo que a base militar de Guantánamo seria fechada. Isso não ocorreu até agora. Seguem tendo presos ilegais em nosso território nacional. Essa base é roubada de Cuba. Ela foi negociada em 1902. E, depois, em 1904. A partir de 1904, este contrato entre o governo de Cuba na época e os EUA nunca mais foi tocado. Por leis internacionais, um contrato que tenha mais de cem anos e que não seja tocado, morre por morte natural. São as leis internacionais desse mundo. Apesar disso, os EUA não aceitam. Faz mais de cem anos que esse contrato já faleceu. E mantém ilegalmente esse nosso território ocupado.
E Cuba nada pode fazer?
Cuba protestou em todos os meios, nas Nações Unidas, em todo o tipo de organização do mundo. Não há resposta. Quando os EUA começaram a usar a base como um cárcere ilegal, Cuba protestou em todos os níveis, em todas as organizações internacionais. Não houve resposta. Que podemos fazer? Tirá-los de lá, com muito prazer o faríamos. Mas seria a desculpa que teriam para nos atacar.
Volto a perguntar sobre as damas de branco. Há quem diga que a primavera árabe pode chegar a Cuba. A sra. teme isso?
As damas de branco são para mim uma vergonha como mulher. O que elas pedem? Que se deixem livres assassinos, terroristas, pessoas que atacaram a economia de seu próprio povo, mercenários que se venderam aos interesses dos EUA e da Europa? E que uma mulher não enxergue que seus próprios filhos estão numa sociedade livre, uma sociedade que cuida das crianças, do momento em que nascem até os últimos anos de sua vida. Uma sociedade em que a educação é totalmente gratuita. Não importa se és dama de branco, de preto ou de verde. Como não são capazes de valorizar essas coisas? Que posso esperar de uma pessoa assim? Se uma pessoa tem princípios e luta pelos seus ideais, eu a respeito, mesmo que não sejam os meus [ideais]. Mas quando essa pessoa recebe dinheiro para fazer essas ações? Quando recebe dinheiro e vive desse dinheiro para fazer esse tipo de coisa contra o seu próprio povo? Não vou respeitar essa pessoa. Não posso respeitar um mercenário.
É o caso das damas de branco?
É o caso de todas essas senhoras. O que estão defendendo? A quem estão defendendo? Pessoas que colocaram veneno em água de crianças, que tentam incendiar uma central telefônica e que contratam pequenos delinquentes no país para tentar desestabilizá-lo? Por muito humana que eu seja, por muito que eu queira, não posso aceitar. Porque não estão defendendo ninguém, nada que seja justo. Se elas fizessem de coração, se não recebessem dinheiro para fazer tudo isso, eu poderia tê-las em conta. Porque são mulheres, podem amar a seus maridos. Pode ser um filho da puta. Se está apaixonada por ele, tem que se respeitar. Mas que nasça de ti, não que recebas dinheiro para fazer todo o show que fazem. Não posso apoiá-las. É isso que acontece com as damas de branco. O povo as rechaça. As rechaça ao ponto de que a policia nacional tem que protegê-las. É uma reação do povo, que sabe o que estão fazendo essas senhoras. Nós temos um nível cultural importante na população.
A vitória da esquerda no Peru muda algo na América Latina?
Estamos vivendo a Alba, a alternativa bolivariana, com Venezuela, Cuba, Equador, Bolívia, Nicarágua e duas ilhas pequenas do caribe. Temos intercâmbios culturais e econômicos, respeitando idiossincrasias e soberanias. Mas sendo cada vez mais companheiros na luta pelo bem estar do povo. Esperamos que Peru se una. Mercosul é outra instituição. Seria fantástico se Brasil e Argentina se unissem à Alba, pois isso significaria que não há retrocesso para a AL. Se os gigantes latino-americanos se unissem num processo emancipador da América, não haverá o que nos detenha.
Cuba é hoje dependente da Venezuela como foi no passado em relação à URSS?
Não. São coisas diferentes. Venezuela é um país latino-americano como nós, a mesma cultura, maneira de ser. Estamos numa mesma organização latino-americana. Também tivemos muito respeito com a URSS.
Mas a dependência econômica? Cuba é dependente hoje da Venezuela?
Não. Temos intercâmbios importantes, sobretudo no petróleo. Estamos buscando energias alternativas, como a solar. Não há uma dependência. Poderíamos estar hoje perfeitamente bem sem a Venezuela. Claro, há algumas coisas que seriam prejudicadas. É melhor ter um amigo por perto do que um inimigo. Bolívia, apesar de mais longe, também.
E o Brasil?
Com o Brasil temos muito boasr elações diplomáticas. Há muitas empresas brasileiras em Cuba. Empresas brasileiras que comercializam com Cuba muito bem.
Quais?
Melhor não mencioná-las.
Como é a sua vida? Como é conviver com a herança de Che?
Tenho 50 anos, duas filhas. A maior tem 22 anos, acabou de se graduar em economia em Havana. A segunda tem 21 anos e está terminando seu terceiro ano de medicina. É o tesouro maior que tenho como ser humano. Trabalho muito com crianças, sou pediatra. Trabalho também numa escola para crianças com necessidades especiais em Havana. Que também me fazem muito feliz, me fazem melhor ser humano todos os dias. Pois são crianças muito especiais, com uma grande capacidade para amar. Trabalho também em casas de amparo. Dou consultas como médica, trabalho no centro de estudo Che Guevara, levando a imagem de Che. Meu salário é como médica, especialista de primeiro grau.
Você mora em Havana?
Sim. Minha filha menor vive comigo; a maior vive com sua avó paterna, pois seu pai faleceu há alguns anos. Tenho também meus irmãos.
O que eles fazem?
Camilo, 49, trabalha no centro de estudos Che Guevara. Célia é veterinária especialista em mamíferos marinhos e trabalha no aquário nacional de Cuba. Ernesto é advogado, mas gosta de trabalhar com motos. É mais mecânico do que advogado. Trabalha por sua conta. E mamãe, que é o centro. É diretora do centro de estudo Che Guevara.
Há machismo em Cuba?
Sim, há algo. Superamos muito com a revolução. Fizemos um giro de 180 graus. Não é possível arrancar tudo de uma vez. É lento. É possível fazer mudanças econômicas e sociais num estalar de dedos, mas mudanças mentais levam tempo. A geração das minhas filhas é muito mais forte, Sabem quem são e para onde vão. Também os homens têm hoje um conceito muito mais aberto. Temos avançado muito. A dupla jornada de trabalho da mulher vai diminuindo.
Como lidar com o mito Che?
Mito, não. Quando falas, por exemplo, de Cristo, é muito distante do ser humano, não sabes se existiu ou não. Che não pode converter-se num mito. Ele era um homem como qualquer um de nós. Isso é o que o faz bonito, completo. Que sendo humano, com todos os problemas e deficiências humanas, soube ser um ser humano melhor. É o que queremos que nossos filhos entendam, aprendam. E que consigam seguir esse exemplo de vida, de ação, de honestidade, de integridade como ser humano.
A imagem dele está por toda parte, mercantilizada em camisetas. Quem as usa sabe quem ele foi?
Algumas pessoas que usam essas camisetas sabem quem ele é e têm consciência. Outras não. Não sei por que usam. Talvez porque papai era muito bonito e as pessoas gostam da imagem. Não posso dizer. Já vi pessoas que não sabem quem ele é e usam sua camiseta. Na Itália, por exemplo, homens da juventude fascista pediram a meu irmão e a mim que assinássemos uma camiseta. E quando nos disseram que eram da juventude fascista, dissemos que eles estavam loucos, que precisavam estudar o Che para ver quem ele era.
Também aconteceu na Itália que dois homens começaram a me olhar muito. Estranhei. Quando perguntei por que me olhavam, me disseram: se tu és real, quer dizer que Che era um homem como nós. Me tocaram. Viram que eu era de carne e osso. Pela primeira vez me senti útil só por ser filha de Che. Sim, tão real como eles, e por isso tão difícil de alcançar. Superar outro ser humano que soube ser melhor que nós. Isso é difícil.
A sra. quase não conviveu como ele.
Muito pouco. Tinha quatro anos e meio quando ele partiu para o Congo. Depois ele regressou a Cuba de forma clandestina. Porque não queria se despedir novamente do povo cubano; já tinha feito isso oficialmente. E, quando voltamos a vê-lo, ele estava transformado numa outra pessoa. Portanto durante muitos anos eu não soube que aquele homem era meu pai. A mim me resta minha mãe, que o amou profundamente e passou esse amor a seus filhos e os seus amigos mais próximos, que sempre nos contavam coisas, mantendo essa imagem que eu admirava. Essa imagem foi crescendo muito. Quando completei 16 anos me perguntei porque eu gostava de meu pai, se não o tinha tido perto de mim quase nunca. Busquei alguns flashes de memória e me dei conta de que esse homem me havia amado de verdade. O que tu podes fazer é devolver esse amor, apesar de não estar presente. É o que fazemos.
E você tem alguma lembrança forte dele?
Sim, por exemplo. Acho que foi nos últimos momentos antes da viagem para o Congo. Meu irmão Ernesto havia nascido há apenas um mês. Tenho uma imagem de minha mãe, com meu irmão apoiado sobre seu ombro. Eu estou embaixo olhando a cena. Meu pai está vestido como militar e tocado com uma mão muito grande a cabecinha do bebê. Essa imagem sempre me ficou na retina. Não falei com ninguém, era minha, muito linda. E eu sou mãe também e me ponho a pensar nesse momento, quem sabe de despedida, em quanta preocupação ele poderia estar tendo com esse bebê, se esse bebê, quando crescer, vai entender porque ele não estava. [Chora, tentando conter as lágrimas] Toda uma série de coisas. E esse momento me faz pensar em meu pai com muito amor, com muita força. Porque ele foi um homem capaz de amar com tanta ternura e, ao mesmo tempo, capaz de seguir o seu caminho, de saber que é mais útil noutro lugar. É o melhor exemplo de um verdadeiro homem, de um verdadeiro comunista: de oferecer o melhor da sua vida apesar de si mesmo.
Depois tive outro encontro, quando ele regressou do Congo, já transformado em outro homem. Não sabia que era papai. Essa noite eu caí, bati forte a cabeça. Ele me tomou em seus braços, me protegeu. No fim, eu disse alto: mamãe, acho que esse homem está apaixonada por mim. E deve ter sido algo muito duro para ele, porque não pode me explicar porque me queria de uma maneira muito especial. Mas para mim foi ótimo. Porque quando depois soube que aquele homem era meu pai, apesar de naquele momento não saber quem era, apesar do seu disfarce, eu senti que esse homem me amava de uma maneira muito especial e isso é bonito para qualquer filho.
Essa cena do disfarce está no filme de Steven Sodenbergh. O que achou dos filmes que foram feitos?
O filme com Benício não gostei. Gostei mais do filme de Walter Salles. Não que não goste do ator. Benício fez o maior esforço. Mas a coisa histórica. Na primeira parte, por exemplo, ocultou a parte de papai como formador de homens. Isso não se vê no filme, e talvez seja a parte mais importante de meu pai. Depois, a parte da Bolívia. Fazem toda uma película de guerra. Mas não está o sacrifício dos homens que, como meu pai, largaram tudo para ser útil para outro povo. Isso não se sente no filme. O filme de Walter Salles é muito melhor, muito mais respeitoso, mais real, feito com uma entrega total, eu me identifiquei muito.
Como foi desfilar no Carnaval de Florianópolis?
Levei uma bronca de minha mãe. O Carnaval de Cuba é diferente, é brincadeira. Aqui é uma expressão cultural, tem outra conotação. Depois aparece comigo, num carro alegórico tipo tanque, um homem vestido como meu pai. Isso para minha mãe é um insulto, porque ela respeita muito a sua imagem. Mas eu senti o respeito e a admiração desse jovem por meu pai. Mas minha mãe não gostou.
Como a sra. avalia a manutenção da memória sobre o seu pai?
Muitas coisas faltam. Um das mais importantes é que não há publicações suficientes para os jovens, sobre sua imagem, sua vida. Há muitos livros publicados por terceiros. Mas obras feitas por Che não há para toda a juventude. Esse é um dos objetivos do centro de estudos Che Guevara: fazer esse tipo de publicação.
Trabalhamos com uma editora australiana para levar toda a obra de meu pai aos jovens. Temos doze livros publicados. Há um dedicado aos jovens que se chama Che a partir da memória. É uma compilação de escritos dele desde que ele tinha 16 anos. Tem outro sobre América Latina. Outro sobre economia política, no qual ele faz uma crítica aos manuais de economia da URSS daquela época. Há apontamentos sobre o Congo. Tem discursos, como ele fez em Punta Del Este contra a Aliança para o Progresso. Há o discurso de Argel. Tem o texto sobre o homem e o socialismo em Cuba, que é, para mim, como uma bíblia.
Como está a juventude em Cuba?
Bastante sã. Não temos muito problemas com drogas e Aids. Estuda muito. Há um milhão de estudantes universitários para uma população de 11,5 milhões. Mas é preciso trabalhar todo o tempo. A pressão ideológica contra Cuba é muito forte. Os Estados Unidos criaram a TV José Marti. Há cinco estações de rádio que fazem emissões dos EUA em castelhano. Alguns escutam. Foi o que aconteceu há alguns anos, quando pessoas saíram no Malecón com malas esperando que os viessem buscar. Foi por causa das rádios, que diziam que lanchas iriam buscá-las.
Como a sra. explica isso? As pessoas querem fugir de Cuba?
Isso era no período especial, quando a situação em Cuba era de se arrancar os cabelos, era desesperadora. Então pessoas que não têm os princípios necessários para aguentar a situação pensaram que poderiam viver melhor em outro lugar. Mas se deram conta de que foram manipulados e enganados. Não havia ninguém. E saíram quebrando. E o povo cubano saiu a controlá-los. Não houve um policial cubano. Foi uma coisa espetacular. Chamaram Fidel e Fidel foi. E o povo gritou: viva Fidel. E ele neutralizou a situação. Um ano depois, os jovens fizeram nesse mesmo dia uma marcha espetacular debaixo de uma chuva tropical.
Mas hoje isso poderia acontecer?
Perfeitamente. A última marcha de primeiro de maio foi espetacular, 5.000 jovens fecharam a marcha. E não se vai à marcha de forma obrigada, se faz de coração.
É muito pesado ser filha do Che?
Não. Minha mãe sempre nos ensinou que iríamos receber coisas que não havíamos ganhado. Que teríamos que receber: o nome de meu pai. Mas que deveríamos colocar os pés firmes sobre a terra e deixar passar o que não ganhamos como ser humano. É o que fazemos. Recebemos o nome de papai, mas deixamos passar tudo o que não é para nós. Por isso vivemos muito tranquilos.
A mentalidade de hoje é mais à direita do que era nos anos 60?
Não. Depende de como a esquerda se comporta num momento como este. Se viveres de costas para o teu povo, perdeste tudo. Mas, se tu estás ao lado dos necessitados e segue trabalhando ao lado de teu povo nos momentos mais difíceis, esse povo se dá conta que tu existe, e que tem algo diferente a oferecer. O mundo não tende a pensar como uma direita conservadora. Veja o movimento nas ruas da Espanha, os indignados.
Mas na Espanha a direita ganhou as eleições.
Mas esse movimento nas ruas não se via há muito tempo. E é contra o capital. Sabem bem o que estão exigindo: os bancos não podem seguir ganhando a custa do povo. Isso não é direita. É esquerda, é um despertar da consciência social.
Mas a direita ganhou.
Depende como são as eleições, partidos que levam listas. É um rolo. A suposta democracia nesse sentido se emaranha muito para as eleições. Se não tens capital, não entras nas eleições.
Há democracia em Cuba?
A democracia é o poder do povo. É o que diz a palavra demos: poder do povo. É um Estado de direitos para todos os cidadãos. Isso em Cuba existe sem nenhum tipo de dúvida. O que o povo diz é o que se faz. O povo sempre tem a última palavra.
Como está o caso dos cubanos presos nos EUA?
A mídia nunca fala. Falam dos presos em Cuba, das senhoras de branco, mas nunca falam dos cinco heróis cubanos presos nos EUA. Cuba é um país agredido pelo governo dos EUA, que mantém organizações terroristas de origem cubana no sul da Flórida. Chegam à costa cubana e metralham. Ferem crianças e idosos. Não dizem nada contra isso. Envenenaram a água de uma escola infantil. A mulher que quis incendiar a telefonia estava sendo paga por eles. Colocaram fogo em um edifício onde havia uma escola infantil. A dengue hemorrágica foi introduzida em Cuba através dessa gente de Miami. As últimas bombas em Havana, quem foi? Um turista salvadorenho pago diretamente por essa gente. Ele está preso em Cuba. Seu telefonema. Está tudo gravado. Nunca uma organização internacional protestou contra as ações terroristas contra Cuba. O governo dos EUA declarou que vai lutar contra o terrorismo em qualquer parte do mundo. Exceto em seu território nacional.
Esses cinco cubanos entraram nessas organizações porque é a única maneira que temos de evitar esses atos. Eles estavam dentro dessas organizações para dar informações dos atos terroristas contra o nosso povo. Foram detectados. Essas organizações terroristas do sul dos EUA enriqueceram com o tráfico de drogas, de armas e de seres humanos. O FBI nos procurou e demos informação de boa fé. E o que fez o FBI? Prendeu os nossos e deixou livres os terroristas. Estão presos há 13 anos. Dois deles nasceram nos EUA. Três eram cubanos com nomes falsos. Por isso podem ser penalizados. Mas a pena é de um a cinco anos de prisão, pelas leis dos EUA.
Há antecedentes. Outros foram condenados a oito anos. O FBI não demonstrou que eles tinham informação que comprometesse a segurança dos EUA. Nenhum pode ser condenado por espionagem, porque não há prova. Não era isso que estavam fazendo. Apesar disso, foram condenados a penas perpétuas. Um deles a duas vezes a pena perpétua! Com toda a mobilização internacional demonstramos que foram cometidas violações tremendas dentro das leis dos EUA. Comprovados agentes foram condenados a 10, 20 anos. E esses, que não tiveram nada comprovado, têm a pena perpétua! Como é possível? Conseguimos um segundo julgamento por causa da pressão internacional. Se os EUA usassem sua própria lei, esses homens seriam colocados em liberdade já. Porque não há lei que sustente essas prisões. E tem que a questão da imparcialidade. Como vais julgar cinco homens cubanos, que tenham se infiltrado nas organizações terroristas em Miami, em Miami? É impossível. Não funcionam as l eis nos EUA. Por isso precisamos da solidariedade internacional nesse caso. Para pressioná-los a fazer justiça. Só queremos que os EUA façam justiça e façam valer suas próprias leis.
Com essas reformas, o Estado vai se reduzir em Cuba?
O Estado de Cuba é o povo no poder. Sentimo-nos muito bem representados pelo nosso Estado.