Eu
estava sentado, sozinho, na frente de casa. Era final de julho, mas isso não
importa. O mal-estar insistia sem parar. Acho até que era crônico. Tarde da
noite, na minha boca um cigarro apagado, em minhas mãos uma caixa de fósforos.
Ali onde eu estava soprava um vento fraco e chatíssimo que insistia em apagar
os palitos que eu acendia, um por um. Uma tosse me atormentava a algumas
semanas, cada vez mais frequente. A frequência era diretamente proporcional a
intensidade, parecia até a porra de um cálculo de física.
Aproveitava
a monotonia daquela madrugada para secar uma velha garrafa de cachaça da boa
que tinha guardado. Depois disso, com certeza passaria mal, vomitaria,
desmaiaria em algum canto inapropriado da casa, como a cozinha, ou ao lado da
privada, se não na rua mesmo.
Enfim,
é por ali que se aproxima uma viatura da força tática com três porcos. Passam
bem devagar, com os faróis apagados e a cabeça dos dois que não dirigem pra
fora, um na esquerda do banco de trás e o outro na direita do banco da frente.
Eles estão procurando motivo pra arrastar com alguém, pra dar um choque, como
diziam. Eles já estavam calibrados. Tinham dado alguns tiros depois de descolar
uma branca num esquema certo que tinham feito numa biqueira pertinho dali.
Não
demora veem um cara sentado na calçada com uma garrafa do seu lado, dão uma
encarada bem dada e veem seus lábios dizerem, logo depois da viatura passar:
“perdeu o cu na minha cara, coxinha viado do caralho”. Um vira para o outro
rapidamente e diz:
- você viu isso?
- Lógico.
- Que cusão,
cara!
- Vamos
voltar, ou vai deixar quieta essa porra?
- Não, ele tá
tirando, vamos voltar lá e trocar uma ideia com
aquele
arrombado.
A
viatura para e dá a ré, um dos porcos me pergunta:
- O que é que
você disse aí?
- Nada.
- Nada?
- Não falei nada, não!
- Como não falou? Eu ouvi malandro, como que
você fala que não disse nada, hein?
Seu bosta, você chamou nós três aqui de coxinha.
Eu
me levanto e quase caio, balbucio, não falo, devido ao efeito da cachaça de boa
qualidade que eu saboreava naquele momento, mas também por causa do medo e
nervoso que eu sentia.
- O que que
você tá falando aí?
não estou
entendendo porra nenhuma. Esse porra tá chapado,
tá muito
louco.
É
nessa hora que os três saem da viatura e me cercam, sinto logo um soco na minha
têmpora esquerda, me tonteia e eu caio. Olho pra cima e vejo os três porcos me
olhando, em embaixo humilhado e eles três rindo de mim. Um deles me levanta
bruscamente e começa a realizar o procedimento de um enquadro.
- Encosta na parede, Afasta as pernas
mais um
pouco, vai caralho!
Aí
ele chuta uma das minhas pernas para afastar da outra. Me revista, me bate, me
pergunta o número do meu RG, me pergunta se tenho passagem, me pergunta onde
morava. Digo para ele cada número do meu RG, respondo que tenho uma passagem
por desordem pública e que morava na casa cuja calçada eu fui abordado.
É
justamente no fim dessa revista que um dos porcos me surpreende com 9 pinos de
cocaína em sua mão estendida, dizendo que tinha encontrado no meu bolso. Fodeu,
eles iriam tentar me forjar um doze, diriam que eu estava passando na frente da
minha casa, só pra clientela autorizada, mas que embriagado acabei desacatando
a autoridade dos porcos e caí, descoberto pelos honrosos suínos.
Aqueles
9 pinos eram parte dos 45 que eles descolaram no tal esquema certo, uma parte
que valeria a pena perder para curtir a brisa surrando, ameaçando, humilhando e
prendendo um otário que quis tirar com eles e se fodeu.
Um
deles me pergunta quem morava comigo, respondo que era meu pai, minha mãe e
minha irmã. Um deles bate palmas e me pergunta o nome do meu pai, respondo.
Ele
sai logo em seguida, de pijama e um pouquinho alto da caninha que tomara a
pouco no bar.
- Senhor, eu gostaria de lhe dar a triste
notícia
que seu filho está aqui fora,
bêbado, desrespeitando
os cidadãos que trafegam pela
redondeza, inclusive
xingou agente, que tava passando
por aqui, agente
revistou ele e encontrou uma quantidade de
entorpecente
que é enquadrada como tráfico, então nós vamos ter que
prendê-lo.
Meu
pai escutava tudo aquilo e me fitava com um olhar tão castrador quanto o da
minha infância, mas ao mesmo tempo era castrado. Eu olhava para o ranger de
dentes do porco e o seu nariz que deixava um líquido escorrer enquanto falava
com meu pai, seu olhar era sádico, e seus olhos arregalados, suas pupilas
dilatadas, seus movimentos e seu falar agressivos e acelerados.
Tudo
isso expandiu meu mal-estar, trouxe à tona tantas memórias, meu superego
praticamente não existia, meu pai, os porcos, a cadeia, a farsa, a cachaça de
ótima qualidade que eu tomava. De súbito agarrei a 38 que estava meio solta no
coldre do porco e tomei-lhe a arma, não titubeei, pensei duas vezes ou vacilei,
mas sim disparei três vezes, três tiros em cada cabeça de porco. Um feito
incrível dada minha embriaguez.
Pronto,
a merda estava feita e na frente da minha casa tinham três corpos de porcos
jogados e sem vida. Minha primeira reação foi soltar a arma no chão, gritar e
chorar dizendo que não tinha feito nada, que eles queriam forjar um flagrante e
que tinha feito aquilo por reflexo. Meu pai calmamente responde:
- nós tem que dar um fim nesses porra. Vamos
queimar porco, viatura e o caralho a quatro.
- E depois,
porra. Eu matei três porcos na frente
de casa.
- Cala a boca e
joga eles no banco de trás.
E
lá estavam eles, três porcos amontoados, um em cima do outro, gelados pedaços
de carne suína. Eu iria desová-los, como eles fizeram com tanto moleque
cheirador de cola dormindo nas quebradas e batendo carteira à noite. Matavam
por vício e diversão, sumiam com o corpo e foda-se. Agora eles tinham que sumir,
e logo.
A
chave da viatura estava no contato – que sorte da porra – disse o velho. Eu
entrei no carro e subi os vidros, meu pai também. Torcíamos pra não ter nenhum
problema que nos denunciasse, e não teve.
Chegamos
a um terrenão baldio num canto abandonado e apodrecido da cidade, eu só pensava
em ligar pra minha mãe e minha irmã. Meu pai fazia um esquema com uma mangueira
e uma garrafa PET e tirava a gasolina da própria viatura, enchendo a garrafa
até a boca, ele espalha por toda superfície do carro, encharca os porcos e o
interior do carro. Enquanto isso, acendo um cigarro com um bom isqueiro que eu
achei no bolso do porco que tinha me dado o soco na têmpora, arremesso o
cigarro no carro, ainda pela metade pois não me aguentava de ansiedade pra ver
o que vi.
A
viatura queimava, o fogo ia alto, a cor era linda, o calor era aconchegante. A
imagem dos porcos ali dentro queimando e derretendo me dava uma sensação de
glória, vitória, desprezo, remorso, medo, incerteza e insegurança. Eu só
pensava em ligar pra minha mãe e minha irmã.
Saímos
de lá, buscamos a caranga velha do meu pai, acendi um cigarro, liguei o rádio,
pus uma fita K7 antiga, esperei o velho chegar e ligar a caranga. Nunca liguei
pra minha mãe e minha irmã, nunca mais voltei pra casa.
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