sexta-feira, 17 de abril de 2015

9 de Abril: Não Tem Arrego!

Ana Montenegro: 100 anos de uma feminista de classe


Milton Pinheiro*
A história do século XX foi marcada pela presença ativa e intelectual de mulheres que, mesmo com a tentativa de torná-las invisíveis no processo social e político, tiveram um papel fundamental nas lutas que marcaram o mundo contemporâneo. Elas enfrentaram os pontos centrais das questões de gênero, lutaram nas contendas da nossa classe, enfrentaram ditaduras, pegaram em armas para defender a vida e se bateram pelas transformações na sociedade capitalista. Portanto, cumpriram uma intensa jornada de lutas pela emancipação humana. Contudo, tudo isso ocorreu, enfrentando o preconceito e a cultura machista fomentada pela natureza da sociedade de classes.
É nesse período histórico, e dentro do contexto dessas lutas e bandeiras, que Ana Lima Carmo, conhecida como Ana Montenegro, cumpriu uma intensa e marcante atividade político-social ao lado das mulheres e dos trabalhadores do mundo.
Ana Montenegro, nome que assumiu em virtude de uma intensa atividade jornalística na imprensa comunista, aprofundou sua participação nas lutas político-sociais nas manifestações em apoio a uma ocupação, que a população de trabalhadores sem teto fizeram no bairro da Liberdade, em Salvador. Essa luta tornou-se um emblema pela moradia na Bahia e ficou conhecida como a ocupação do “Corta-braço”, em 1947, posteriormente transformada em bairro e chamado de Pero Vaz. Hoje, temos livros (Ariovaldo Matos) e trabalhos acadêmicos sobre essa ocupação vitoriosa, localizada no coração do bairro mais negro da América latina (Liberdade).
Os comunistas do PCB organizaram essa luta e durante a ocupação, que contou com forte repressão policial, se reuniam na pensão (localizada na Baixa dos Sapateiros) da comunista e firme apoiadora do Corta-braço: Maria Brandão. Essa figura representativa das lutas populares era, para Ana Montenegro, o símbolo da mulher que exercia um papel fundamental para combater a discriminação de gênero e afirmar a presença da mulher nas batalhas políticas. Foi um pouco antes desse acontecimento, num contexto de luta social, da militância jornalística, de combate à ditadura do “Estado Novo”, de afirmação das lutas democráticas e de grande participação dos comunistas que, em 1945, nas manifestações/comemorações da independência do Brasil, na Bahia, Ana Montenegro entrou para o Partido Comunista Brasileiro, no dia 02/07/1945, tendo sua ficha de filiação assinada pelo histórico líder comunista, Carlos Marighella.
Ana Montenegro, mulher feita de aço e pétalas, nasceu em 13 de abril de 1915 na cidade de Quixeramobin, no interior do Ceará. Mas, como ela rotineiramente gostava de afirmar: “sou cearense de nascimento, carioca de coração e baiana por escolha”. Das lutas políticas dos anos de 1944/45 (democratização do Brasil, fim da II guerra, anistia para os presos políticos e legalidade para o PCB) à participação na batalha das ideias/lutas populares do intervalo democrático, aprofundaram o compromisso de Ana Montenegro com o devir da história. Foi, sem dúvida, um momento de transformação radical na forma de fazer política e seu engajamento era pleno.
No período do intervalo democrático (1945/1964) Ana Montenegro exerceu uma intensa atividade ideológica, atuando na imprensa comunista e em outros veículos. Publicou centenas de artigos nos jornais: O MomentoClasse OperáriaTribuna PopularCorreio da ManhãImprensa PopularNovos Rumos, etc. Sem falar que foi uma das fundadoras do jornalMomento Feminino e da sua participação na revista Seiva, considerada uma das primeiras revistas dos comunistas no Brasil.
No conjunto das ações que movimentava a prática social de Ana Montenegro, uma começou a ter repercussão central: a questão das mulheres. Participou de instâncias políticas da luta feminista, a exemplo União Democrática de Mulheres da BahiaComitê Feminino pró DemocraciaLiga Feminina da Guanabara e a Federação Brasileira de Mulheres, entidades com intensa presença de mulheres que participavam das lutas político-sociais e hegemonicamente ligadas ao PCB.
No entanto, o intervalo democrático, período em que - mesmo com tentativas de golpes - teve grande participação social, e foi de intensa mobilização política, encerrou-se com o golpe burgo-militar de 1964. Nesse processo de configuração das trevas, Ana Montenegro teve que tomar o caminho do exílio, tornando-se, portanto, a primeira mulher exilada pela ditadura. Inicialmente aloja-se na Embaixada do México, indo em seguida para este país, depois passa por Cuba (onde mantém contato com líderes comunistas e anticolonialista, a exemplo da vanguarda cubana e de líderes africanos), deslocando-se em seguida para a Europa onde se estabeleceu em Berlim, na Alemanha Oriental.
Estabelecida na Alemanha, Ana Montenegro teve importante papel na organização das lutas feministas e na imprensa que debatia essa questão: foi integrante da seção para América Latina da Federação Democrática Internacional de Mulheres(FDIN), quando trabalhou na revista dessa entidade: Mulheres do Mundo Inteiro. Também trabalhou em organismos internacionais como a ONU e a UNESCO, tendo participado de várias articulações internacionais e congressos que tinham como bandeiras a questão da mulher, da luta de classes e da emancipação humana. Tudo isso, sempre ao lado do operador político que escolheu para combater: o PCB.
Mas, como nos informa o dramaturgo Willian Shakespeare, “não tem longa noite que não encontre o dia”. No Brasil, apesar da repressão violenta da ditadura, as lutas de resistência democráticas e as lutas operárias e sociais conseguiram mudar o quadro político: a anistia, mesmo com restrições, foi aprovada em 1979. Ana Montenegro tomou o caminho de casa, voltou ao Brasil. De 1979 a 1985, ainda sob a tutela da ditadura, ela intensificou a sua militância em várias frentes: a luta feminista, as lutas populares, a defesa dos direitos humanos e o combate interno aos equívocos políticos do PCB, que na época estava em franco processo de ruptura com a sua histórica tradição: operando através dos interesses da ordem.
Após a derrota da ditadura, mesmo com a transição tutelada, Ana Montenegro avançou na luta político-social, atuou no combate ao racismo e aprofundou o debate sobre a questão de gênero. Refletiu, escrevendo, a partir de muita pesquisa e debates, artigos e textos sobre o momento da luta feminista. Publicou diversos livros: Mulheres – participação nas lutas popularesUma história de lutasSer ou não ser feminista e Tempos de Exílio.
Ana Montenegro atuou na área do direito, foi ativa jornalista, desenvolveu intensa pesquisa histórica sobre os movimentos populares e suas lutas de contestação. Sendo também poetisa, lembre-se do poema que fez em Berlim, no outono de 1969, quando do assassinato do seu amigo e camarada, Carlos Marighella:
Em seu enterro não havia velas:
Como acendê-las, sem a luz do dia?
Em seu enterro não havia flores:
Onde colhê-las, nessa manha fria?
Em seu enterro não havia povo:
Como encontrá-lo, nessa rua vazia?
Em seu enterro não havia gestos:
Parada inerte a minha mão jazia.
Em seu enterro não havia vozes:
Sob censura estavam as salmodias.
Mas luz, e flor, e povo, e canto
responderão “presente”, chegada
a primavera mesmo que tardia!
Ana Montenegro, com a sua presença, marcou as lutas feministas e populares do final do século XX. A partir do seu retorno do exílio, atuou primeiramente, no Fórum de Mulheres de Salvador e, depois, no Conselho Nacional dos Direitos das Mulheres (1985/1989). Tinha como prática constante se dirigir, sempre às tardes, para a sede da OAB – em Salvador – para ajudar nas tarefas da Comissão de Direitos humanos. Foi homenageada em um congresso nacional da OAB, indicada ao Nobel da Paz e recebeu diversas homenagens e comendas de instituições nacionais.
Uma das suas mais firmes convicções era a tarefa de lutar contra a destruição do PCB, tentativa realizada pelo grupo dirigido pelo deputado Roberto Freire. Travou o bom combate, com força e determinação, lutou em defesa do socialismo e da revolução brasileira. Com seu patrimônio político e intelectual deu uma enorme contribuição ao processo de “reconstrução revolucionária” do PCB.
Ana Montenegro, exilada política, separada e mãe de dois filhos, teve um deles (Miguel) morto durante o exílio: era uma mulher feita de aço e pétalas. Ela faleceu em 30 de março de 2006, em seu enterro o povo, as mulheres simples, o mundo político e intelectual e seus camaradas encheram o salão para um ato político da mais bela homenagem. Seu caixão ao baixar para a cremação estava coberto com a bandeira vermelha do PCB, marcada com a foice e o martelo da luta dos trabalhadores do campo e da cidade, na terra que escolheu como sua: Salvador. Após 100 anos do seu nascimento a memória da história afirma mais uma vez: Ana Montenegro, presente!

*Milton Pinheiro é professor de área de história e teoria política da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e pesquisador da USP. Autor/organizador de vários livros, entre eles, Ditadura: o que resta da transição (São Paulo, Boitempo, 2014).

De onde vem o conservadorismo?


“Atrás da aparente beleza, estão os assassinos em massa, a abolição da dignidade, os campos de trabalho forçado, a rejeição de toda a noção de liberdade e fraternidade. (…) [O comunista] é aparentemente inofensivo, será o seu mais querido amigo, o mais sincero, o mais leal… até o dia em que ele o assassinará pelas costas.”
(O GORILA, folheto anticomunista distribuído no interior das Forças Armadas como preparação para o Golpe de 1964)
Há um certo espanto com as recentes manifestações de direita no Brasil, como se fossem algo fora do lugar e do tempo, resquícios de um tempo obscuro que se esperava superado. Por outro lado, espantam-se os que crêem que tal fenômeno é absolutamente novo – daí os epítetos tais como “nova direita”, “onda conservadora” e outros. Acreditamos que o conservadorismo que se apresenta na ação política de direita não é algo do passado que se apresenta anacronicamente no cenário de uma democracia, nem algo novo que brota do nada.
O conservadorismo sempre esteve por aqui, forte e persistente. O fato é que não foi enfrentado como deveria e nos cabe perguntar: por que?
CONSERVADORISMO E LUTA DE CLASSES
O conservadorismo não pode ser entendido em si mesmo, ele é expressão de algo mais profundo que o determina. Estamos convencidos que ele é uma expressão da luta de classes, isto é, que manifesta em sua aparência a dinâmica de luta entre interesses antagônicos que formam a sociabilidade burguesa. Nesta direção é importante que comecemos por delinear o cenário no qual o conservadorismo se apresenta.
O impacto da ação política de direita espanta aqueles que julgavam que as classes sociais não eram mais categorias que poderiam explicar a sociedade contemporânea. De certa forma, prevaleceu uma estratégia política que orientou de forma determinante a ação política dos trabalhadores que esperava amenizar ou contornar a luta de classes para que fosse possível um conjunto de reformas de baixa intensidade no longo prazo.
Esta estratégia, denominada de Democrática e Popular, se fundamenta na convicção que a crise da autocracia burguesa permitiria superar uma característica histórica de nossa formação social, isto é, seu caráter “prussiano”. O Brasil era uma sociedade com um Estado forte e uma sociedade civil fraca, assim o fortalecimento da “sociedade civil” geraria um cenário no qual a disputa de hegemonia favoreceria às classes trabalhadoras, diminuindo o espaço próprio da direta e favorecendo a política de esquerda.
Não foi o que ocorreu. A estratégia burguesa de transição pelo alto, controlada e segura, venceu. Não porque não se tenha fortalecido a sociedade civil burguesa e o Brasil não tenha se “ocidentalizado” nos termos gramscianos, mas justamente pelo fato do fortalecimento da sociedade civil burguesa ter acabado por criar um quadro no qual a hegemonia burguesa se consolidou, diminuindo e não ampliando o espaço para a política de esquerda.
Há aqui duas incompreensões graves no que diz respeito ao conceito de hegemonia e, por conseguinte, da compreensão do caráter do Estado. Prevaleceu uma visão mecânica que associou a autocracia ao uso da força e a democracia ao consenso. Desta forma dicotômica, ao optar pela disputa de hegemonia supostamente favorecida pelo fortalecimento da sociedade civil burguesa, retira-se da paleta de opções políticas o uso da força – seja da esquerda, abandonando a perspectiva de ruptura revolucionária, seja pela direita, com sua tradicional tendência golpista que interrompe os processos institucionais.
A maneira de contornar a luta de classes e tornar possível as reformas de longo prazo seria o pacto social. Isto é, deixar a burguesia ganhar seus lucros e criar as condições favoráveis para seus negócios enquanto, pouco a pouco, gotejam melhorias pontuais para os mais pobres. Assim a burguesia não teria razão para interromper o processo político e a disputa seria desviada para o terreno que interessaria aos trabalhadores: a disputa eleitoral e o reformismo de baixa intensidade gradualista que seria aceito pelas classes dominantes uma vez que não se trata de nenhuma mudança socialista, mas de buscar uma maior justiça social.
Neste cenário ideal a direita e suas manifestações mais gritantes se isolariam, o conservadorismo iria cedendo espaço para uma consciência social cada vez mais progressista e viveríamos felizes para sempre.
A primeira incompreensão grave é que a hegemonia de uma classe social não se define, pelo menos como Gramsci pensava a questão, pela mera disputa das consciências sociais e da legitimidade, mas tem suas raízes nas relações sociais de produção e de propriedade determinantes numa certa época histórica. A hegemonia nasce da fábrica, dizia o comunista italiano. Querer reverter a direção moral de uma sociedade mantendo as relações sociais de produção e formas de propriedade inalterada é uma tarefa impossível.
Da mesma forma é impossível separar os dois elementos constitutivos do Estado, isto é, a coerção e a busca do consenso. Dizia Gramsci:
“O exercício “normal” da hegemonia, no terreno tornado clássico do regime parlamentar, caracteriza-se pela combinação da força e do consenso, que se equilibram de modo variado, sem que a força suplante muito o consenso, mas ao contrário, tentando fazer com que a força pareça apoiada no consenso da maioria”
(Antonio Gramsci, Cadernos do Cárcere, v. III, 2007, p. 95)
Vejam que combinados os elementos do par dialético força/consentimento, o Estado burguês precisa apresentar sua dominação de classe como expressão de um interesse geral, e não de seus egoístas interesses particulares.
Esta é a função da ideologia, mas como isso é possível?
Como já diziam Marx e Engels na Ideologia alemã, as ideias dominantes em uma soctiedade são as ideias das classes dominantes, mas estas só são dominantes porque expressam no campo das ideias as relações que fazem de uma classe a classe dominante. Tal aproximação teórica é essencial à compreensão do nosso tema.
O conservadorismo não é um desvio cognitivo ou moral, não é fruto de uma educação mal feita ou de preconceitos vazios de significado. O conservadorismo é uma das expressões da consciência reificada, nos termos de Lukács, ou do chamado senso comum, nas palavras de Gramsci, isto é, é uma expresso da consciência imediata que prevalece em uma certa sociedade e que manifesta, ainda que de forma desordenada e bizarra, os valores determinantes que tem por fundamento as relações sociais determinantes.
Neste sentido, o conservadorismo não veio de lugar nenhum, sempre esteve ali nas relações que constituem o cotidiano e na consciência imediata. As características desta consciência imediata já foram delineadas por Lukács e se centram nos seguintes aspectos:
a) imediaticidade, o que significa que é uma consciência que se forma nas relações imediatas do ser social com as coisas e pessoas próximas, nos contextos presenciais e que tem por horizonte de ação o tempo presente;
b) heterogeneidade, o que implica que as diferentes esferas de ação da pessoa no trabalho, na vida afetiva, nos vínculos com o sagrado (o que inclui o futebol, além da religião), na adesão à valores morais, ganham autonomia e coexistem lado a lado sem a exigência de coerência entre os elementos que conformam um determinado modo de vida e uma correspondente concepção ideal de mundo;
c) superficialidade extensiva, ou ultrageneralização, mecanismo pelo qual a experiência imediata é estendida e universalizada de contextos particulares para generalizações carentes de mediações, o que leva ao preconceito como forma imediata do pensamento no cotidiano.
Esta consciência imediata forma uma senso comum, bizarro e ocasional, isto é, formado por elementos dispares e heterogêneos relativos aos diferentes grupos ou segmentos sociais que o indivíduo entra em contato em sua vida, na família, nos diversos grupos, no trabalho, na vida pública e outras esferas.
Ainda que todo senso comum expresse as relações sociais determinantes e portanto valores da ordem burguesa, nem todo senso comum é conservador. Faz parte do senso comum, até pela característica da imediaticidade, a reação a uma situação vivida como injusta ou intolerável, a necessidade da solidariedade entre os que vivem as mesmas situações, o que constitui um núcleo saudável do senso comum ou o bom senso. Entretanto, tais características também são cruzadas pela luta de classes, isto é, podem ser elementos basilares da constituição de uma consciência de classe dos trabalhadores ou de formação de uma ação política conservadora.
Neste ponto as duas dimensões da análise se encontram. A estratégia gradualista e o governo de pacto social que dela deriva, desarmam a consciência de classe forjada nas décadas anteriores e criam uma situação na qual a consciência dos trabalhadores reverte-se novamente em alienação, em serialidade, fortalecendo o senso comum. A consciência de classe dos trabalhadores pressupõe uma clara definição do inimigo, como dizia Marx, para que os trabalhadores se vejam como uma classe que pode representar uma alternativa universal para o sociedade, outra classe tem que se expressar como um empecilho universal, um entrave que precisa ser superado; ou como dizia Freud, só é possível manter alguns em união quando se dirige o ódio para outros.
O pacto social e a política da pequena burguesia procura diluir as diferenciações de classe, em outras coisas, com a enganosa ideia de nação. Ocorre que a consciência de classe não é uma naturalidade sociológica, de forma que cada classe tem a consciência que lhe corresponde, mas ela se forma na ação política desta classe e, em grande medida, pala forma política que assume sua vanguarda. Uma ação política classista gera um forte sentimento de pertencimento e identidade de classe, uma política diluída de cidadãos, consumidores, parceiros, e outras gera indiferenciação, permitindo que se imponha a inércia da visão de mundo própria da sociedade dos indivíduos em livre concorrência.
Desarmada a classe trabalhadora de sua consciência de classe, a luta de classes que se esperava contornar e que é impossível de evitar, se manifesta. É fácil identificar os setores de direita que operam no jogo político, mas não é tão simples entender por que meios logram a adesão de segmentos sociais diversos.
A iniciativa política e o trabalho ideológico da direita é facilitado por um mecanismo que Althusser identificava como “reconhecimento”, isto é, a ideologia só pode ser efetiva se o valor ideológico encontrar na consciência imediata algo que produza um reconhecimento e assujeite a pessoa a determinadas práticas. Neste ponto, o funcionamento da ideologia é preciso. As relações sociais interiorizadas na forma de valores que constituem uma determinada visão de mundo são apresentada à estes valores agora na forma do discurso ideológico.
Ocorre que o discurso não é uma mera reapresentação do conteúdo mais substantivo das relações sociais internalizadas, ele o conforma de uma determinada maneira e com certa intencionalidade, produzindo um efeito político extremamente útil à dominação. Certas palavras chaves, “significantes mestres” nos termos de Lacan, ordenam a serie de palavras que são veículos de valores dando consistência a uma determinada visão de mundo orientada ideologicamente.
Isto significa, em última instância, algo muito simples. A disputa de hegemonia, que implica também, mas não somente, na disputa das consciências, é uma luta de classes e não um debate sobre valores. Só se afirma uma visão de mundo, numa sociedade de classes, contra outra visão de mundo. Neste sentido a meta do consenso nos quadros do Estado burguês é ela mesma ideológica.
No inevitável acirramento da luta de classes, os governistas do pacto social ficam à deriva porque não esperavam ter que enfrentar a direita neste cenário na qual ela, ao contrario dos gradualistas, consegue dialogar com a consciência imediata das massas. E o fazem operando eficientemente os elementos do conservadorismo deixado inalterado.
CONSERVADORISMO E FASCISMO
Há um certo exagero conceitual na tentativa de identificar este conservadorismo como fascista. Mas, nos seria útil identificar nesta ideologia elementos que correspondem ao discurso conservador no intuito de compreender sob que significantes o conservadorismo abre o dialogo com a consciência imediata.
Leandro Konder em seu livro Introdução ao fascismo (São Paulo, Expressão Popular, 2009) nos dá um bom caminho nesta direção. Primeiro ressaltemos que o fascismo, tal como Togliatti e outros definiram, é uma expressão política da pequena burguesia que serve aos interesses do grande capital monopolista/financeiro e que logra uma apoio de massas nas classes trabalhadoras. Ideologicamente ele opera necessariamente apagando suas pegadas relativas ao seu pertencimento de classe, e para tanto é essencial a ideia de Nação, de onde deriva a primeira característica do pensamento conservador: ele é extremadamente nacionalista.
A esquerda sempre flertou com a ideia de nação, mas ela é uma patrimônio da direita e uma propriedade intelectual da pequena burguesia, que por ser uma classe de transição (não é trabalhadora nem burguesa) se crê acima dos interesses de classe, sendo a legitima detentora do interesse nacional. Não cabe aqui avançar na discussão se este valor pode ou não servir a propósitos de esquerda – já serviram. Sempre achei temerário e as consequências não costumam ser boas. O que nos interessa diretamente aqui nesta reflexão é que a direita, de novo, manipula com eficiência esta ideia vaga que a nação precisa ser defendida contra seus adversários e sai às ruas com as cores da CBF.
Outro aspecto importante a ser destacado na ideologia fascista, que aqui nos serve apenas de parâmetro de análise, é opragmatismo imediatista. Derivado de um quadro de referencia imediato, de problemas ou contradições que lhe afetam de forma direta, o fascista assim como todo conservador quer uma solução. Não há história, assim como inexistem determinações fora do campo do visível. Desta forma o pensamento conservador não se preocupa se antes falava uma coisa e agora fala outra, pois não conexão entre estas dimensões, só existe o agora, o presentismo exacerbado. Dane-se o passado e não me interessa as consequências disso para o futuro, me interessa o gozo presente, o êxtase.
Tal característica remete a outras duas próprias do pensamento conservador: a preponderância das paixões e oirracionalismo. Como não existem determinações mais profundas além da aparência dos fenômenos, assim como não existe história que articule formas passadas às presentes, tudo se resume a reação instintiva e animal, as paixões. Daí que o conservador é por natureza violento e irracional.
Um fato ilustra bem isso. Um fotógrafo mineiro foi agredido na manifestação da direita porque se parecia com Lula. Vejam, um ser racional não agrediria alguém por querer participar de ato público, mas um ser irracional não se permite perguntar algo ainda mais elementar: o que estaria fazendo o ex-presidente da República disfarçado de repórter num ato da direita?
Tentar buscar algum tipo de racionalidade na direita conservadora (uma redundância, não é?) é tarefa inútil. Assim como aGlobo tentando derivar dos atos uma pauta, quando se via claramente um exercício sistemático de ódio; ou ainda a presidente Dilma e seus perdidos ministros reafirmando questão abertas ao dialogo com a malta que pede sua cabeça.
Há um aspecto que deriva, tanto do nacionalismo, como do imediatismo e do irracionalismo apaixonado: o preconceito. Todo fascista e a maioria dos conservadores tem que desembocar, mais cedo ou mais tarde, em algum tipo de supremacia que justifique sua ação. Aqui ganha uma densidade visível a operação do princípio freudiano segundo o qual o que permite a solidificação da identidade grupal é a transferência do ódio para algo ou alguém fora do grupo. É preciso criar um estigma, um preconceito, para que a paixão violenta se expresse.
Não basta a oposição a um governo, um debate sobre alternativas de sociedade. Isto tudo é racional demais. É preciso colar algo mais atávico, afetivo, que mobilize paixões irracionais. Daí a funcionalidade dos estigmas, e entre eles do anticomunismo, ainda que o alvo da raiva não seja, nem de longe, algo parecido com um alternativa comunista. Desta maneira eu posso atacar, pedir o impedimento, xingar, desejar matar e acusar sem entender o porquê. Simplesmente porque é comunista (ou judeu, ou negro, ou homossexual, etc…).
Em função da grande carga afetiva mobilizada na opção conservadora, ela exige e pressupõe a repressão da sexualidade, como já analisou brilhantemente Willian Reich. Por isso o fascista e o conservador é um moralista. O moralismo e suas manifestações associadas, como a intransigente defesa da família, por exemplo, são um elemento constante no discurso conservador, mas aqui também é necessário a alteridade, um outro que ameace a ordem e a harmonia do padrão moral, daí que não nos espanta que o discurso conservador associe o nacionalismo, a irracionalidade, o moralismo com a homofobia.
Por fim, o fascismo sempre foi um crítico da democracia e do regime parlamentar e defendeu a solução autoritária. O conservadorismo é sempre elitista. A noção de supremacia, seja racial ou outra qualquer, age aqui como a convicção que o governo deve ser entregue a uma elite capaz, forte e moralmente firme, para conduzir a sociedade na direção correta. No fundo o autoritarismo é uma consequência de tudo o que foi dito, pois aquele que clama contra o desvio moral, o risco da corrupção, na verdade está clamando por controle, inclusive contra seus próprios impulsos. Todo conservador é um sádico.
O que nos salta aos olhos é que estes elementos do discurso ideológico conservador produz a função do reconhecimento com os elementos da consciência imediata reificada, com o senso comum. Por ouro lado, a consciência de classe se constitui num tortuoso processo de rompimento com o senso comum, ainda que sempre partindo dele.
A única maneira de enfrentar o discurso e a prática política da direita é revelando sua particularidade e a natureza de seus interesses de classe. No entanto esta não é uma mera operação racional, em grande medida a luta de classes exige que a transição da alienação para a consciência de classe também opere com mecanismos subjetivos, de identidade de classe, de formação de uma nova subjetividade, de transformação cultural. O fascismo só tem espaço para crescer na derrota da esquerda.
Contra esta ofensiva da direita, que era inevitável, seria necessário agora uma classe trabalhadora que constituída enquanto classe e portadora de valores e uma visão de mundo revolucionária, que visse na ameaça fascista a necessidade de sua maior unidade. Na ausência desta consciência de classe, na desarticulação da visão de mundo de esquerda que poderia ordenar o senso comum numa direção diferente, os membros das classes trabalhadoras são devolvidos à serialidade e viram presas do discurso conservador.
Enganam-se os que querem restringir o pensamento conservador a uma categoria de eleitores, ou apenas aos segmentos médios. O grande risco é que a base de massas para alternativas conservadoras (não creio que no momento possam ser identificadas como fascistas) não pode ser somente as chamadas “classes médias”, ainda que sejam estas a caixa de ressonância por natureza da proposta conservadora. O alvo é outro. São os trabalhadores. Por isso o abandono das demandas próprias de nossa classe pelo governo de pacto social é o caminho mais rápido para dotar a alternativa de direita da base social que ela precisa.

Mauro Iasi é professor adjunto da Escola de Serviço Social da UFRJ, pesquisador do NEPEM (Núcleo de Estudos e Pesquisas Marxistas), do NEP 13 de Maio e membro do Comitê Central do PCB. É autor do livro O dilema de Hamlet: o ser e o não ser da consciência (Boitempo, 2002) e colabora com os livros Cidades rebeldes: Passe Livre e as manifestações que tomaram as ruas do Brasil e György Lukács e a emancipação humana (Boitempo, 2013), organizado por Marcos Del Roio. Colabora para o Blog da Boitempo mensalmente, às quartas.
http://blogdaboitempo.com.br/2015/04/15/de-onde-vem-o-conservadorismo/